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Dra. Teresinha Martins, pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, integrante da equipe do site assediomoral.org |
Foto: Nando Neves
A Dra. Teresinha Martins é formada em Psicologia, com mestrado e doutorado em Psicologia Social e, nos últimos anos, vem se dedicando a estudar os conflitos nos locais de trabalho, principalmente o assédio moral. Ex-bancária e ex-sindicalista, ela atua como professora e pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ e faz parte da equipe do site assediomoral.org. Ela esteve na Federação no último dia 23 falando sobre o assunto e concedeu à nossa reportagem a seguinte entrevista:
Por que temos a ideia de que o trabalho tem que ser penoso, um sacrifício? Isso influencia o comportamento do trabalhador assediado?
Essa ideia do trabalho penoso nós herdamos da tradição judaico-cristã, de “ganhar o pão com o suor do rosto”. Antes do capitalismo, o trabalho ficava para os “inferiores”. Na Grécia antiga os seres humanos que pensam – eram só homens, as mulheres não – são os que filosofam. Com o advento do capitalismo, que precisa que todos estejam disponíveis para o trabalho, é necessário criar ideologicamente este conjunto de ideias que diga que o grande merecimento é dado pelo trabalho.
O trabalho é o lugar da vida, pode subverter o real, porque o trabalhador pode criar. Isso daria a ele uma relação de muita potência com seu trabalho. Veja que perigoso: deixar o trabalhador ali, com aquela sensação de potência. Como eu posso controlá-lo depois? A não ser que, ideologicamente, se crie um conjunto de ideias que diga que este trabalho não é prazeroso, mas um sacrifício. Como o Capital poderia implementar este conjunto de práticas altamente “matadoras”, sem que as pessoas se rebelassem? A não ser que as pessoas acreditem que é isso mesmo, que o trabalho é sinônimo de sofrimento.
Quando o assediado vai para o trabalho, é preciso tirar a potência dele, o empregador quer se livrar dele. A forma mais eficiente, que já está preparada antes, é dizer que o trabalho é doloroso. No caso dele, não é preciso dizer, porque é doloroso mesmo. O trabalho dele se transformou num lugar de sofrimento, e eles vivenciam esse sofrimento. Isso dificulta a reação, porque naturaliza. “É assim mesmo, vai reclamar com quem?” A melhor forma de implantar uma prática de opressão é naturalizá-la. “Isso sempre foi assim” é a primeira coisa que dizem. Esse conjunto de ideias serve para inibir a provável reação.
Outra ideia corrente é a de que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Isso também ajuda a naturalizar o assédio e a fazer o trabalhador não reagir?
Na verdade, o mundo do trabalho é o mundo da execução de tarefas. O chefe deveria ser aquele que ordena as tarefas, e não aquele que manda. Ordenar e cuidar para que as tarefas sejam executadas no melhor proveito de todos. Quando a gente diz “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, significa, primeiro, que, se, quem obedece tem juízo, aquele que deu a ordem não tem. Significa que a ordem, necessariamente, é uma coisa ruim. São associadas as ideias de coordenar um trabalho com ser autoritário e as pessoas acham que isso é legítimo. Não, eu posso ser chefe e distribuir as tarefas sem gritar com o subordinado, sem humilhá-lo, sem diminuí-lo, mas respeitando seu trabalho. Mas esse é um dos conjuntos de ideias que circulam e contribuem para naturalizar. O trabalhador pensa “Eu vou ficar de bico calado porque o chefe mandou”, ele “tem juízo” para não ser mandado embora, para manter o trabalho. Quer dizer que vai ficar em silêncio mesmo que, e principalmente, se as coisas estiverem erradas.
Cada vez que somos separados do todo e atacados na nossa pessoalidade, tudo o que fazemos para sair, sozinhos, tem que ser inscrito num conjunto de códigos que diga “ela é louca”. As mulheres são “loucas”, “barraqueiras”. Os homens não reagem, eles “engolem”. Cada vez que uma mulher reivindica e é taxada de “barraqueira”, passa a tentar se poupar.
No que o acordo de combate aos conflitos no local de trabalho assinado entre o movimento sindical e os banqueiros deixou a desejar?
Primeiro porque fala dos empregados no geral, não qualifica as diferentes responsabilidades. Não fala na diminuição de metas e de práticas que ocorrem dentro dos bancos e que contribuem enormemente para a ocorrência do assédio moral. O alto desemprego faz com que os trabalhadores se voltem uns contra os outros. O funcionário tem que manter o emprego, então tem que “dedurar” o outro, ser mais rápido que o outro. Seria preciso uma política que acenasse para um ano de estabilidade, uma câmara de discussão – porque fica muito vago duas pessoas discutindo – onde houvesse a garantia de que o sujeito que denuncia o assédio não vai ser demitido. O sindicato leva para o banco a denúncia e o sujeito que denunciar tinha que ter nesse acordo a garantia de que não será demitido.
O problema está ali como se os bancários fossem responsáveis pelo assédio, porque não têm noção de ética. Isso é um absurdo. Relações éticas são relações respeitosas ao outro na sua especificidade. O que está escrito é que se trata de um problema dos que trabalham no banco, porque não têm ética. Não. É um problema de gestão de pessoas. É um absurdo dizer que só ano que vem vamos discutir diminuição de metas. Eu vou pactuar a diminuição de conflitos e não discutir a redução das metas?
Mas, mesmo sendo insuficiente e vago, esse acordo é necessário, é um ponto de partida.
Temos aqui no Rio de Janeiro, no Banco do Brasil, uma situação específica causada pela reestruturação do banco. A empresa está investindo no varejo, ampliando a rede de agências, e reduzindo as chamadas áreas-meio, os departamentos. Só que o número de cargos nas agências é pequeno e, como não vai haver mais a possibilidade do bancário ser promovido para uma área-meio, deve aumentar a competitividade entre os colegas. Esse tipo de conflito também exige atenção?
Isso cria o pano de fundo para que o assédio emerja. Eu fui bancária do Banco do Brasil e, naquela época, a diferença entre o salário de um caixa e de um gerente não era estrondosa, e o salário médio era decente. A gente não se matava para ser chefe. Hoje o salário de entrada é baixíssimo e a diferença entre o vencimento básico e o do gerente é altíssima. O sujeito é obrigado a ser gerente porque é a única forma de sobreviver. Então, ele come vivo o colega para conseguir aquele cargo. Se houvesse um salário mais alto, muita gente que não tem apetite para o poder não precisaria ficar matando o outro.
Cria-se este ambiente conflituoso porque, quanto mais conflito, mais se “reina”. Quando digo que o assédio moral é de alguém que tem poder contra quem não tem, não estou dizendo que não haja vários outros tipos de conflito. Estou dizendo que estes vários outros conflitos preparam o espaço. Se é um vale-tudo, se todo mundo está se matando, ninguém vai se preocupar com aquele que o chefe está perseguindo, com aquela que eu não suporto? “Em casa em que não tem pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Se não há, como havia no Banco do Brasil, estruturas intermediárias, se você não pode ascender, se não há um Plano de Cargos e Salários claramente estruturado, ou você é peão ou vai para Brasília, como é o caso dos funcionários destes departamentos do BB. As opções são tão poucas que os trabalhadores se digladiam entre si. A pirâmide pequena, com topo estreito e base grande, vai criar conflito, vai fazer com que a competitividade seja tão grande que eles se voltam uns contra os outros. Quanto mais se tem poucos empregados em altos cargos, ganhando uma fortuna, e uma imensa base ganhando mal, mais se cria esse clima de “salve-se quem puder”. E aí, o assediador vai poder reinar absoluto.
O assédio é uma ferramenta de gestão para implementar essas medidas. Quem é assediado é aquele que representa um obstáculo ao plano de poder de alguém. O assédio tem uma intenção. Ele não quer só se livrar de uma pessoa, ele faz isso para atingir algum objetivo, para implementar uma política. Por exemplo, numa demissão em massa, se elimina os adoecidos, tanto os que são lentos por causa da doença, quanto aqueles que são exemplo para os colegas de como podem ficar no futuro. Também os recalcitrantes, obstinados. E os excelentes tecnicamente, aqueles que são bons no que fazem, mesmo que eles não abram a boca porque, se ele é bom, ele deveria ser o primeiro a subir. Mas, se eu tenho um plano de colocar meus aliados lá, este que é competente está atrapalhando.
Todas estas políticas formam uma teia na qual o assédio “nada de braçada” para se implementar a política neoliberal. Não é à toa, o assédio tem uma direção, de instaurar essa política de lucro acima de qualquer coisa.
Quais as medidas de gestão que uma empresa tem que adotar para combater todos esses conflitos, não só o assédio?
De maneira geral, primeiro, organizar o trabalho, o processo de trabalho com um ritmo que respeite os trabalhadores, desde o ponto de vista ergonômico; que os trabalhadores tenham salário decente; ritmo de trabalho com pausas, como foi estudado e proposto, não é por falta desse conhecimento que não se concede os intervalos; garantia de emprego; Plano de Cargos e Salários que faça com que o trabalhador possa planejar seu futuro, sem precisar ficar competindo e “passando a perna” no outro; um espaço democrático, com representante do sindicato, dos trabalhadores, dos outros setores da empresa para discussão ampla, numa câmara de mediação que seja realmente uma câmara, não um lugar onde o chefão seja ouvido e os outros não; garantia do anonimato, que o sujeito que apresenta a denúncia não seja identificado ou que, se precisar se identificar, tenha garantias de que não será retaliado; um local de trabalho salubre, com boas condições de trabalho; é necessária também uma política de formação para a diversidade, um processo de sensibilização para convivência com o diferente, os deficientes, os homossexuais, negros, etc. Eu não preciso gostar de quem trabalha ao meu lado, mas preciso respeitar.
Se não estão claras as regras de como poderá ascender profissionalmente, o trabalhador adota qualquer prática. A empresa deve deixar claro que não permite esta atitude. Este é o sentido positivo do acordo assinado entre os sindicalistas e os banqueiros. Mas se a empresa diz que não pactua com o assédio, mas deixa lá o chefe autoritário reinando, está pactuando. É preciso sinalizar para todos que não vamos aceitar, nem ser coniventes com a violência organizacional. Tem que haver políticas claras, que sinalizem que a empresa não vai permitir desrespeito e relações antiéticas e que, se ocorrerem, serão punidas. É preciso também que fique claro a quem o trabalhador assediado deve se dirigir para denunciar, ele não pode ter que procurar o seu próprio chefe para fazer a denúncia. A empresa precisa ter essas câmaras de mediação de conflitos e que isso seja divulgado amplamente, para que o trabalhador já saiba a quem procurar e não precise perguntar a ninguém.
De maneira geral, os departamentos de RH das empresas estão preparados para lidar com os conflitos?
De maneira geral, 95% não estão preparados, porque lidam com o conflito como se fosse um problema entre as pessoas sem nenhuma relação com o local de trabalho. Mas, óbvio, tudo existe entre as pessoas, mas propiciado por uma organização que permite, alimenta e precisa deste tipo de relação.
Quando um gestor tem características pessoais autoritárias, cruéis, desrespeitosas, qual a responsabilidade da empresa sobre os atos dele?
Quando digo que não é a característica psicológica do sujeito que gera o assédio, não estou dizendo que as pessoas não tenham estas características e que não problematizem a situação dada. Por exemplo, um chefe chamado, como as pessoas falam, de psicopata, aquele sádico, que gosta do sofrimento alheio. Na minha concepção a empresa o escolheu exatamente por isso para o cargo de chefia. É uma pessoa com X características para tocar esta política, porque se desse para alguém diferente, esta pessoa se recusaria. Então, a possibilidade primeira é de que tenha sido escolhido exatamente por isso.
Numa novela que terminou recentemente, da Globo (nota: Ti-Ti-Ti, de Maria Adelaide Amaral, encerrada em 18 de março de 2011), tinha o personagem da atriz Georgiana Guinle que era uma psicopata clássica. Ela ficou internada no hospital psiquiátrico e, quando voltou a trabalhar, viu que ninguém havia assinado nenhum contrato durante sua ausência. E ela volta e reergue a empresa. Quer dizer, muitas vezes estas características de doença mental são funcionais para a empresa. O sujeito que é workaholic, viciado em trabalho, ou que tem TOC, é ótimo para a empresa. É à custa do sofrimento da vida dele, mas é bom para a empresa. A empresa que colocou aquele chefe, não sabendo destas características, mas que não o afasta depois que ele se revela, é, no mínimo, conivente por omissão.
O outro lado desta mesma questão é que pessoa assediada nem sempre é boazinha, ela pode ser chata. Isso não significa que não foi assediada, ou que é correto assediá-la. Uma pessoa que é muito boa no que faz tende a ter o “nariz para cima”, um monte de gente não gosta dela, porque ela é boa no que faz. Quando uma pessoa é assediada, não é pelos defeitos, mas pelo que faz de certo, pelo trabalho que faz.
Isso desperta o sentimento de “bem feito” nos colegas quando esta pessoa é assediada. Não existe só “chefe doente” e “subordinado vítima”. Inclusive, numa situação de conflito, as pessoas dão a situação de mão beijada para o assédio. Por exemplo, uma pessoa que é “esquentada”, será sempre provocada para “estourar”. Problemas todos têm, temos características interessantes e outras não. É possível fazer uma política que faça emergirem as características que o grupo mais detesta, para fazer o grupo se voltar contra aquela pessoa. Não porque aquele funcionário está errado, mas pelo que está certo. E não há uma possiblidade de reflexão sobre a aparência das coisas, isso exige tempo, e no cotidiano ninguém consegue.
A política pensada parte das características do sujeito. Por isso digo que o assédio moral é uma tática brilhante. A pessoa é assediada pela característica que socialmente é considerada negativa, ninguém vai xingar o outro de algo que é um valor social. Ninguém vai me xingar de “doutora”. O assediador também pode agir de outro jeito, pegando uma característica deslocada do contexto e a transformando em defeito.
O assédio sempre pega o sujeito na pessoalidade para fazer uma política que não é pessoal, é coletiva. Por mais que a pessoa seja forte e resolvida – e a maioria não é – o assédio incomoda. Todo mundo tem problemas pessoais, a vida cotidiana não é fácil para a grande maioria das pessoas. Mesmo quando a vida está melhor, tem sempre algum problema que ficou ali, no cantinho. A sociedade capitalista tem sempre um núcleo grande de pessoas que estão com muitos problemas. Por isso o assédio moral é tão insidioso, cruel, e penetra tanto. Porque é uma política pensada para atuar exatamente no que já existe, não precisa inventar nada. Atua sobre o existente. Está frágil? Frágil e meio. É uma política muito eficaz e muito barata. São todas as técnicas que se conhece da Psicologia, usadas para o mal. E com um sorrisinho nos lábios.
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Fonte: Da Redação – FEEB-RJ/ES