OS PRIMEIROS DIAS

Logo no dia após a posse, vinte e sete generais saíram às ruas, fardados, para protestar contra sua aposentadoria forçada. Em manifestação em frente ao Palácio do Governo, na Praça Murillo, e com a presença de suas esposas e filhos, os oficiais disseram que Evo não estava cumprindo a Constituição. “Veja, meu pai tinha dez pontos. Deveria ser promovido. Este governo mal começou e já descumpre a institucionalidade”, disse a filha de um dos generais. 
Não se pode afirmar – ainda – que exista um movimento militar contra o governo e, a julgar pela interrupção repentina do protesto, a impressão que fica é de uma reação dos generais à mudança realizada por Evo na alta cúpula das Forças Armadas. Mas nunca é demais lembrar: em 200 anos a Bolívia viveu mais de 200 golpes de Estado. 
A televisão boliviana aproveitou o momento para trazer à tona a questão dos mísseis, que consiste numa negociação obscura com a China, mediada pelos EUA, e denunciada pelo próprio Evo durante o governo anterior. 
 
Quando El Alto desce, o povo treme
Outra questão que chamou atenção foi a declaração de parte da população de El Alto. Sindicalistas afirmaram que não apóiam a indicação de Abel Mamani para ocupar o Ministério das Águas. Mamani esteve à frente das manifestações que forçaram o governo de Carlos Mesa a “desprivatizar” a água e cancelar a autorização para o funcionamento da Águas de Ilimani, subsidiária da francesa Suez-Lyonesse. A população afirma que as bases não foram consultadas. 
El Alto fica a 20 minutos de La Paz e concentra os três sindicatos mais ativos da Bolívia: Federação das Juntas Vicinais (Fejuve), Central Obrera Regional (Cor) e Coordenação Obrera Departamental (Cod). 
O frio da cidade (2º C ontem, ao meio-dia, e sensação térmica de -10º C) contrasta com a capacidade de mobilização de sua população. Em outubro de 2003, por ocasião da Guerra do Gás, os nove distritos da cidade se revezaram durante dezesseis dias bloqueando as principias avenidas, mantendo sempre, no mínimo, vinte mil pessoas nas ruas. A palavra de ordem era uma só: ou renuncia Goñi, ou continuamos nas ruas. No dia 17 de outubro de 2003, Gonzalo Sanchéz de Lozada, o Goñi, renunciou. A Guerra do Gás deixou 67 mortos e 400 feridos, sobretudo em Rio Seco, Villa Ingenio, Senkata, Bollivians, Santa Rosa e Ventilla. Não por outro motivo há um ditado bem conhecido em La Paz: “Quando El Alto desce, o povo treme”. 
Abrahan Delgado, fundador do Movimento Jovens de Outubro, estava lá. “Chegamos a ter cem mil manifestantes nas ruas ao mesmo tempo. Fechamos as ruas com pedras, pneus, caixas, tudo. Ninguém passava”, diz o filho de um aymará com uma quechua. Originário de Inquisivi, uma província de La Paz, Delgado cresceu vendo seu pai trabalhar na Mina Colquiri, de onde a família Patiño extraiu grande parte do estanho boliviano. Talvez por isso aquele garoto de 28 anos tenha alguma coisa diferente; pode ser o olhar cerrado, sempre investigando ao redor, ou o caminhar firme, ou ainda o sorriso aberto, que revela a sensibilidade dos que lutam por um mundo melhor. Em El Alto, ele é considerado um grande herói. 
 
Cautela, pero no mucho
Essas duas iniciativas não chegaram a afetar o início do governo de Evo Morales Ayma, mas devem servir como alerta. O líder da extrema esquerda, Felipe Quispe, declarou que Evo não conseguirá governar por não ter o controle das Forças Armadas. Quispe deu noventa dias para Evo adotar as primeiras medidas que assegurem o caminho para as mudanças prometidas. Faltam oitenta e seis. 
A maior dificuldade de Evo será navegar entre as demandas sociais, que são enormes, e a pressão das empresas multinacionais petroleiras. Evo não promete um governo revolucionário, mas durante a campanha jogou perigosamente com a palavra “nacionalização” dos hidrocarburos. A questão é que nem todos a interpretam da mesma maneira. Para o economista Carlos Arce, o momento exige atenção. “O vice-presidente Alvaro Garcia tem falado em ‘nacionalização inteligente’. Mas, ao que parece, o conceito de nacionalização para este governo será a associação com as multinacionais de energia. O problema é que nem todos pensam assim nas ruas. Isso, junto com esse clima de festa sem fim, pode ser perigoso.” 
O grande interesse estrangeiro na Bolívia, hoje, é o gás natural. Suas reservas são estimadas em 52 trilhões de pés cúbicos e as principais áreas estão nas mãos de multinacionais. A Petrobrás detém o controle dos campos de San Alberto e San Antonio e a espanhola Repsol domina o Margarita. 
O cenário é explosivo. Da mesma maneira que o povo boliviano está consciente do que quer (a distribuição dos recursos naturais para os bolivianos), as empresas imperialistas jamais abrirão mão de seus privilégios. Ao que tudo indica, nenhum dos lados aceitará negociar. Cabe ao governo Evo Morales fazer a sua escolha. 
 
P.S.: Por volta das 21h40 de quarta-feira (25/1), ganha as ruas a primeira marcha de protesto durante o governo Evo Morales. Carregando uma grande faixa e bandeiras wiphala (inca), campesinos do MST da Bolívia caminharam até a frente do Palácio Quemado, na Praça Murillo, e exigem uma audiência com o presidente.
 
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(Por Marcelo Salles, do Fazendo Media – www.fazendomedia.com)
 

 

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