O CARTÃO VERMELHO QUE DESPERTOU O JUIZ NEGRO

SÃO PAULO. Manhã de domingo, penúltima rodada do campeonato de futebol soçaite no clube dos Oficiais da PM de São Paulo. O jogo é tinhoso, a torcida animada, a arbitragem severa. Em determinado momento, um dos zagueiros, o camisa 4, leva cartão amarelo. Sua reação é brutal: “Você tinha de ser dessa cor de merda para fazer isso!”, grita, passando os dedos pela pele do braço. “Preto! Macaco! Olha a sua pele, cor de merda!”. É expulso de campo. O juiz apita a partida até o final.


O camisa 4 é coronel reformado da PM, ex-comandante da Rota e diretor de Sede do clube. José de Andrade Neto é o árbitro. Negro, como o atacante Grafite. É árbitro credenciado pela Federação Paulista de Futebol e contratado do clube para dar aulas de futebol na escola de esportes.


A partida ocorreu no dia 4 de dezembro de 2005. Passam-se 45 longos dias. Até que numa noite de janeiro, José sai de casa, anda meia hora até o 20º Distrito Policial na Zona Norte da capital, e registra o boletim de ocorrência.


Essa é a história do processo que levou um homem que sempre se sentiu indeciso na vida a buscar seus direitos no Estado brasileiro. Quanto ao coronel Antonio Chiari, citado no B.O. número 396/2006 como autor dos crimes de difamação (art. 139) e injúria (art. 140), ele prefere não se pronunciar por enquanto. Procurado pelo GLOBO, considerou o episódio insignificante mas se dispôs a consultar advogado sobre a conveniência de dar sua visão do ocorrido. A resposta veio na manhã seguinte:


-— Vou ficar quieto. Meu advogado pediu que me manifestasse somente na Justiça ou na delegacia. Temos nossas defesas, que usaremos na ocasião.


— Na hora me deu um apagão, relembra José, não sei explicar. Parou tudo dentro de mim. Também não sei como continuei apitando o jogo até o final.


 


Festa já estava em preparação


Era o terceiro jogo que apitava naquele domingo. As 89 partidas anteriores do torneio iniciado em setembro haviam transcorrido sem incidentes e o clube já se preparava para a festa de encerramento, com churrasco de boi inteiro na brasa. O Ferroviário, time do coronel Chiari, liderava e, se vencesse aquela partida, sequer precisaria jogar a última rodada. Entre os 2 mil sócios que chegam a freqüentar o clube nos fins de semana, centenas foram acompanhar as partidas decisivas daquele dia.


Para José de Andrade, o Zé, o campeonato é um bico-bênção: R$ 1.800 para apitar 96 partidas, e ainda por cima perto de onde mora. Gasta menos de meia hora a pé do clube até a casa de barro que divide com a mãe, duas irmãs, sobrinhos e parte de seus oito filhos.


— Sou registrado, tenho benefícios e o clube me dá respaldo bom — plano médico, odonto e farmácia — orgulha-se. Além disso, o novo presidente aumentou a remuneração/hora dos professores de esporte de R$ 8,97 para R$ 10,83. Como também apito jogos da federação, às vezes três a cinco por dia, ganhando R$ 35 por partida, vou me desdobrando.


Segundo ele, a partida que terminou em B.O. policial já começara tensa. O capitão e melhor jogador do Ferroviário estava de cama com caxumba, o time perdia de 3 x 1 e o camisa 10 deles sofria trombadas, se sentia visado e respondia exaltado. Acabou levando cartão amarelo e advertência. No segundo tempo, foi o mesmo camisa 10 que cometeu falta mas antes que o árbitro o expulsasse o coronel Chiari se interpôs, com força.


— Lembro que fiquei transtornado pois o coronel nunca havia gritado antes, só jogava bola, e jogava bem. Achei estranho ele me dar um beliscão e gritar. Dei dois passos para trás, fiquei na minha, parado, e tentei retomar a expulsão do outro jogador. A partir daí foi tudo muito chocante: o coronel me deu um empurrão, eu levantei o cartão amarelo, ele me confronta:


— Ah é, você vai querer me dar cartão, é? Vou ter de sair de campo?


— Por favor, coronel, retire-se, respondi.


—Tinha de ser essa cor de merda, mesmo. Preto. Macaco. Tinha de ter essa pele cor de merda…


José não nota mas sua voz treme. Desvia o olhar ao prosseguir o relato. A família, reunida em volta na mesa da cozinha, ouve em silêncio. Dois de seus oito filhos, de 5 e 9 anos, estão como que grudados ao chão. Sequer piscam. As duas irmãs (de 34 e 37 anos, ambas profissionais e aguerridas) borbulham de indignação muda. A mãe viúva, dona Ana, tem medo da humilhação do filho.


— Durante uns cinco segundos me deu um apagão. Fiquei pensando qual atitude tomar. Dei alguns passos para trás, enfiei a mão no bolso, afastei os atletas do deixa-disso e puxei o cartão vermelho — retoma José. — mas continuei ouvindo a voz do coronel, já fora do campo e com o jogo reiniciado: “Não sei o que esse preto está fazendo aqui. Vou pedir para o coronel Cacau (coronel Luís Carlos dos Santos, presidente do clube) mandar esse preto embora”. Lembro que percebi que a partir dali o coronel já estava se referindo ao meu trabalho, não mais à minha atuação como juiz.


José sempre sonhou ser jogador. Passou no teste do Palmeiras aos 12 anos, passou para a categoria sub-17, subiu para os juniores, foi emprestado para o Santo André, depois para o São José e relembra “os dez minutinhos em que me puseram no gramado do Morumbi, numa partida contra o São Paulo, quando chutei uma bola na trave…”. Paralelamente, dava aulas na primeira escola de futebol da Zona Norte de São Paulo.


Foi então que o pai morreu e ele murchou. Passou um tempão e desistiu da carreira de jogador. Aos 27 anos de idade, já tendo trabalhando há mais de uma década como professor de futebol, resolveu investir na sua formação. Apesar de só ter o segundo grau completo, comprou livros de técnica em português, ganhou manuais de exercícios em italiano e aprendeu a consultar dois volumes em holandês.


— É claro que eu não entendia a escrita, mas pelas figuras eu deduzia o que precisava ser feito. Minha vivência em campo me dava uma vantagem considerável. Além do mais, como não sou bobo, compro jornal e recorto todos os movimentos de domínio de bola, de passe, alongamento e faço um mural para os alunos”, explica. Além disso, fez curso na Federação Paulista e obteve certificados de árbitro nas três modalidades: futebol de campo, futebol soçaite e futebol de salão. No quarto que divide com a mãe, dois filhos e uma irmã, reinam seus troféus como treinador: seis vezes campeão paulista, três vezes da Taça São Paulo, duas vezes campeão categoria sub-15.


José lembra que ainda apitou uma quarta partida depois do fatídico Ferroviário x América, sem incidentes. Exceto por uma voz infantil vinda da lateral do alambrado às suas costas: macaco filho da puta.


— Preferiria não ter olhado mas depois de uns segundos acabei me virando. Era o filho do coronel, ao lado da mãe. Aquilo doeu feio porque eu tinha dado aula para o menino.


Ao final da rodada, o coronel veio em minha direção. Ainda pensei que ele viesse desculpas pelo ato e comecei a pensar no que fazer. Mas ele veio me falar de patentes.


— Você deve ter algo contra oficiais. O Roberval (camisa 10) é tenente e eu sou coronel.


— Não, coronel, isso aqui é um jogo de futebol, nada a ver.


— Você foi parcial, só prejudicou minha equipe.


— Olhe, coronel, a partida já acabou e não vamos mais falar sobre ela.


Fui desviando e ele falando. Passou novamente a mão na pele do braço e repetiu:


— É, tinha que ser, para ter essa atitude…


A esta altura, o episódio do confronto já tinha eco no clube. José lembra de uma associada que a tudo assistiu, casada com um jogador do campeonato.


— Ela bateu na cerca, deu um puxãozinho na minha camisa e falou: “Olha, Zé, você tem de tomar uma atitude. Se você não fizer nada eu vou abrir um boletim de ocorrência”. Fiquei olhando para ela meio assustado e não respondi nada. Nunca tínhamos conversado antes.


Depois passou o Carlinhos, que falou:


— Você tem sangue de barata, cara, ele te chamou de preto imundo, sangue de merda. Se fosse eu, teria quebrado ele na porrada.


— Está certo, falou bem, “se fosse você”. Só que não é. Eu batalhei para fazer esse curso de arbitragem, batalho para dar aula, não tem como tomar uma atitude numa hora dessas. Me botei no meu lugar — sou árbitro, estou apitando. Se dou porrada, a coisa vira pessoal e como ele é diretor pode até me mandar embora por justa causa.


José conta que tomou banho e foi para casa. Ainda cruzou com outros sócios que lhe disseram ter feito a coisa certa.


— Mas no caminho, a pé, fui pensando: “Meu, não sou tão calmo assim, como é que eu não dei um murro no coronel?”.


O terreno em que o bisavô Antonio trabalhou como escravo e que mais tarde foi retalhado pela família Zumkeller, ainda hoje abriga a casinha de dois cômodos dos Andrade. Foi ali que a mãe e as irmãs de José ouviram o seu relato. Foi ali que a irmã Estefânia relembrou que quando ele era menino e a garotada vinha chamar “Zé Negão” para jogar bola, a avó respondia que ali só morava um menino de nome José de Andrade. Passaram a chamá-lo de Andrade.


A partir desse dia o ambiente no clube mudou para José.


— Ficou esquisito. Clima mais pesado. Bato cartão, assino caderno, dou poucas aulas por ser verão. Já no dia seguinte fui chamado pelo presidente, que me perguntou o que havia ocorrido. Contei. Ele me orientou para relatar o episódio ao clube e perguntou se eu tinha tomado alguma atitude externa. Respondi que tinha feito um B.O.


— Você está louco? O que você foi fazer? Fez de racismo?


Tentei enrolar porque na verdade eu não tinha feito nada, não conseguia decidir nada. O coronel Chiari também me fez saber que queria dar uma palavrinha comigo mas eu estava tenso. Consultei duas pessoas de lá que sempre me apoiaram e elas me disseram para não ter medo, afinal eu não devia nada.


A conversa durou uns 20 minutos, ele falou de religião, disse que lidava com preto velho e argumentou que sempre perdia a cabeça quando entrava em campo de futebol. Respondi que eu tinha sido jogador profissional sem nunca ter presenciado uma atitude como a dele. O coronel também falou que a partir da nossa conversa ele voltaria a dormir bem e perguntou se podia fazer alguma coisa por mim. Não, não podia. Achei estranho ele perguntar se eu sabia que ele tinha sido comandante da Rota.


Não, José não sabia. Tampouco deve saber que Antonio Chiari foi um dos 43 oficiais denunciados no inquérito do massacre do Carandiru, que resultou na morte de 111 presos. Tenente-coronel à época (1992), sua tropa foi acusada de ser responsável pelo maior número de mortes no Pavilhão 9. Os seis comandantes que participaram da ação foram afastados, entre eles Chiari. José também deve desconhecer outros marcos da carreira do coronel, que em nada alterariam a sua convicção de que aquela conversa não fora um pedido de desculpas. Continuou esperando.


Várias semanas mais tarde, cruzou na rua com o mesário do jogo da encrenca:


— Pô, Zé, você nunca teve nada, está é querendo dinheiro. Se o problema é a desculpa, ele pede. O coronel falou que você está querendo levar uma grana. E desculpa aí, Zé, porque ainda não decidi a favor de quem vou testemunhar.


As irmãs contam que José chegava em casa, sentava no chão e ficava calado.


— Não pensei que ia ser tão pesado — admite ele.


 


No Fórum, mais advertências


Avisos não lhe faltaram. Numa manhã , criou coragem, foi até o Fórum da Barra Funda e contou seu caso a dois promotores. Ambos o aconselharam a se certificar solidamente da determinação de suas testemunhas, pois as surpresas costumam ser desagradáveis. Recomendaram que fizesse bem as contas para ver se agüentaria uma eventual perda de emprego.


O próprio delegado que tomou seu depoimento para o B.O. desaconselhou que arrolasse testemunhas militares. E uma das advogadas que contatou inicialmente o alertou para a possibilidade de um revertério, com o coronel lhe movendo um processo por danos morais.


De cada conversa, José voltava para casa abatido.


— Cheguei a falar para minha mãe que talvez fosse melhor fazer acordo com o coronel, deixar ele se retratar em público. Só decidi ir em frente quando me dei conta de que eu iria ficar abaixando a cabeça para ele toda vez que o encontrasse. Sou uma pessoa que demora para tomar decisões, tenho essa personalidade. Mas desde o dia 19 de janeiro me sinto mais inteiro. Já reuni todos os meus filhos de três casamentos — alguns não se conheciam — coloquei no quarto da minha mãe e expliquei que o pai deles estava nascendo ali. Choramos e brincamos juntos. Não sei no que vai dar. Mas sei que o ato que o coronel teve comigo ele não vai ter com mais ninguém.

 


(Por: Dorrit Harazim – Jornal O Globo – em 5/fev)

 

 

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