NUNCA É TARDE PARA AGIR

No mês de novembro passado, o Centro de Políticas Sociais, da Fundação Getulio Vargas, dirigido pelo economista Marcelo Néri, lançou um excepcional serviço aos trabalhadores brasileiros. Trata-se de um simulador de salários que tem por base cinco características individuais: sexo, grupo étnico/racial, idade, grau de urbanidade e formação educacional. Por esse instrumento de simulação, qualquer pessoa poderá saber, segundo o conjunto das características descritas, qual é a oferta salarial disponível no mercado para o seu perfil. Todo este exercício tomou como referência os dados oficiais do Censo de 2000, conduzido pelo IBGE.

Segundo o Centro de Políticas Sociais, os melhores salários do mercado estão reservados aos médicos com pós-graduação na área e às pessoas na faixa etária entre 40 e 44 anos. Assim, partiremos deste nível de formação e grupo etário para testar as ofertas salariais de mulheres e homens, afros e não-afros (classificação adotada no simulador) no mercado de trabalho brasileiro.

Testando o simulador, ficamos sabendo que um homem não-afro, com 44 anos, urbano, médico pós-graduado, deve esperar do mercado uma remuneração de R$ 4.339,87. Uma mulher não-afro, com 44 anos, urbana, médica pós-graduada, deve esperar uma remuneração de R$ 2.658,37 — ou 61,2% da expectativa salarial do homem não-afro. Um homem afro, com 44 anos, urbano, médico pós-graduado, deve esperar uma remuneração de R$ 3.350,59 — ou 77,2% da expectativa salarial do homem não-afro. Uma mulher afro, com 44 anos, urbana, médica pós-graduada, deve esperar uma remuneração de R$ 2.052,38 — ou 47,2% da expectativa salarial do homem não-afro.

Considerando a magnitude das diferenças salariais, poderíamos afirmar que, no Brasil, ser mulher e ser negro (afro) é condição de discriminação salarial no mercado de trabalho. No entanto, como essa afirmação poderia soar ideológica, avancemos em outros detalhes de cunho pedagógico para superar essa tendência. A partir do simulador podemos apreender algo mais sobre essas sinistras cifras da discriminação racial e de gênero. No Brasil, para negros e mulheres ser médico pós-graduado ou freqüentar classes de alfabetização de adultos não significa, relativamente, ter melhores salários. Ou, em outras palavras, as diferenças percentuais dos salários são idênticas.

Um homem, não-afro, 44 anos, urbano, freqüentando as classes de alfabetização de adultos, deve esperar uma remuneração de R$ 297,85. Uma mulher, não-afro, 44 anos, urbana, freqüentando as classes de alfabetização de adultos, deve esperar uma remuneração de R$ 182,45 — ou 61,2% da expectativa salarial do homem não-afro. Um homem, afro, 44 anos, urbano, freqüentando as classes de alfabetização de adultos, deve esperar uma remuneração de R$ 229,96 — ou 77,2% da expectativa salarial do homem não-afro. Uma mulher, afro, 44 anos, urbana, freqüentando as classes de alfabetização de adultos, deve esperar uma remuneração de R$ 140,86 — ou 47,2% da expectativa salarial do homem não-afro.

Frente a esses dados, talvez fique mais transparente a oportunidade que o debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial, em curso no Congresso Nacional, nos abre para superar mentalidades e práticas do século XVI (convictas dos benefícios resultantes da subordinação social, econômica e política de negros e mulheres) e nos coloque, de uma vez por todas, frente aos desafios do século XXI. Desafios que não podem conferir legitimidade a tal ordem de irracionalidade. Afinal de contas, por que motivo, no Brasil, uma mulher negra de 44 anos, urbana, médica pós-graduada, deve esperar uma remuneração de apenas 47,2% da expectativa salarial do homem branco?

O Estatuto da Igualdade Racial, em seu texto, visa superar a desigualdade racial, aprimorar as políticas públicas e instituir as políticas de ação afirmativa como uma estratégia de superação da discriminação racial. O estatuto prima por criar um ambiente institucional —- nos âmbitos público e privado —- de igualdade de oportunidades que reconheça a legitimidade de iniciativas reparatórias para corrigir distorções e desigualdades derivadas da escravidão durante o processo de formação social do Brasil.

Assim, se a discussão sobre a aprovação do estatuto cair no terreno árido do sim ou não, perderemos a sua essência. E o essencial é fazer com que o país seja libertado da discriminação e da desigualdade racial. Ou seja, a tarefa que nos compete hoje é redigir os parágrafos que a Lei Áurea deixou para que nós, no século XXI, assumamos a responsabilidade de, em conjunto, elaborar. Frente a assuntos tão complexos, sejamos generoso; nunca é tarde para agir.


(Por Wania Sant’anna – Jornal O Globo)

 

 

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