DECÁLOGO DAS ÁGUAS

Água de beber


 


Toda população brasileira, urbana, rural, de cidade grande, periferia ou pequena localidade tem direito a um abastecimento de água potável suficiente, livre de contaminação orgânica ou química de qualquer espécie. Agentes comunitários devem orientar a população mais carente sobre os cuidados necessários à descontaminação da água potável.


 


A população deve ter ao seu dispor uma informação precisa, completa e confiável, sobre a qualidade da água potável que consome. Seu monitoramento deve abranger, além da poluição orgânica, aquela por organoclorados, metais pesados e outras substâncias ou compostos com efeito cumulativo de longo prazo. Essa informação deve ser transparente, com a participação dos usuários na supervisão da sua elaboração, e divulgada regularmente, em linguagem simples e acessível a todos. Devem ser estudados em profundidade os efeitos a longo prazo do tratamento com cloro e estimuladas formas de tratamento alternativas. Deve ser abolida a taxação por estimativa. Cada residência familiar tem direito a um hidrômetro para poder pagar aquilo que efetivamente consome e ser estimulada a economizar.


 


 


Águas sujas


 


As valas negras a céu aberto, a presença de esgoto dentro ou perto de casa é a maior causa de mortalidade infantil. Toda população brasileira tem direito ao saneamento básico, tirando as águas sujas de perto das crianças. O segundo passo é tratar o esgoto. Há uma série de soluções, desde a minimalista até a mais completa, para eliminar esse alto risco ambiental e sanitário. A fossa séptica, a fossa com filtro, o sistema de condominial, o sistema misto, a rede de esgotos, a lagoa de estabilização, a oxidação laminar, a estação de tratamento num grau crescente de aprimoração do tratamento, até chegar ao reaproveitamento.


 


O objetivo é claro: lançar no rio, na galeria pluvial, na lagoa ou no mar apenas o efluente tratado. Saneamento não é, apenas, obra. Sanear também quer dizer instruir, organizar e mobilizar. Governos, comunidades e iniciativa privada devem trabalhar juntos em Conselhos das Águas e outros comitês de gestão de bacias hidrográficas. As águas devem ser taxadas de acordo com seus usos e respectivos impactos.


 


 


Águas cheias


 


As águas também matam. Nossos rios, valas e canais foram assoreados, aterrados e retificados abusivamente. Muitos foram canalizados. Suas margens foram ocupadas, suas matas ciliares e áreas de acumulação suprimidas. Enormes quantidades de lixo se acumulam no seu interior e nas encostas desmatadas, sujeitas à erosão. Enormes extensões de solo foram totalmente pavimentadas e impermeabilizadas sem deixar suficientes pontos de contato da água da chuva com o solo. Regiões no passado alagadiças, com pântanos, mangues, brejos ou várzeas foram primeiro aterradas e depois asfaltadas e edificadas. O lixo que muita gente insiste em vazar nas ruas entope os ralos e as galerias pluviais. Nas chuvas de verão a natureza se vinga. As encostas desmatadas desmoronam sobre as construções em área de risco. A água corre sobre as ruas asfaltadas, a grande velocidade, arrasta consigo casas, automóveis e pessoas.


 


Os rios e canais transbordam. Precisamos recuperar as margens dos rios, recompor sua profundidade original através de dragagens criteriosas, reflorestar as matas ciliares, os mangues, as várzeas, criar bacias de acumulação nos pontos críticos, reassentar as comunidades de áreas de risco, fazer uma drenagem inteligente, com uma visão de conjunto da região, multiplicar nas cidade o maior número possível de áreas verdes destinadas a acumular a precipitação, criar reservatórios nos telhados para absorver parte da água e liberando-a finda a chuva. Manter ao máximo áreas de solo aberto nos estacionamentos, praças, calçadas. Reflorestar as encostas sujeitas à erosão e risco. Criar circuitos de recompra e reciclagem de lixo plástico e projetos geradores de renda para sua catação e acondicionamento para o reciclagem. E acabar com a mentalidade do “descartável”, obrigando ao retorno e à recompra das garrafas plásticas.


 


 


Águas do mar


 


A poluição das praias por esgotos, efluentes industriais ou derrames de petróleo é uma ameaça ao direito de todo ser humano a um reconfortante e revigorante banho de mar. É também um abalo na auto-estima dos brasileiros e um fator inibidor ao desenvolvimento do turismo. A população tem o direito a uma informação segura e atualizada sobre as condições da água do mar, dia a dia. Essa informação deve passar pelo crivo de um controle social e ser divulgada, regularmente, em linguagem simples, acessível a todos. A supressão das línguas negras e de todo tipo de despejo de esgoto, nas praias ou em rios, valas ou canais que nelas desaguem é obrigação do poder público, da mesma forma que mantê-las com um índice de coliformes fecais abaixo de 1000 por 100ml, em tempo seco.


 


O monitoramento deve se às areias que devem ser mantidas limpas e revolvidas com regularidade pois seu potencial de armazenamento de patogênicos é maior do que a água salgada. O monitoramento, o controle e a rápida intervenção em relação à poluição proveniente de embarcações, derramamentos de petróleo e outros é uma missão das autoridades civis e militares inerente à soberania sobre as águas. A navegação de jet-skis e outras embarcações devem ser rigorosamente reprimidas dentro da faixa de 200 metros da linha de rebentação.


 


 


Águas dos rios


 


O Brasil tem uma profusão fantástica de rios e alguns dos mais importantes do mundo como o Amazonas, o São Francisco e o Paraná. Muitos dos nossos rios estão seriamente ameaçados de desaparecer ou de virar vala de esgoto a céu aberto. O desmatamento das áreas de mananciais; o garimpo criminoso com despejo de mercúrio, a devastação das matas ciliares, os aterros e as construções dentro das faixas marginais de proteção, projetos de irrigação ou de geração de energia mal concebidos, pesca predatória são algumas ameaças a serem combatidas e revertidas. Todo rio tem direito à proteção da sua nascente, às suas matas ciliares e a receber apenas efluentes, domésticos ou industriais, previamente tratados.


 


O rio deve vir antes dos “recursos hídricos”. Estes devem ser tachados de acordo com o tipo de uso, o volume e a demanda de recuperação correspondente. Rios não cabem em fronteiras. Defender os rios é um desafio de cooperação entre diferentes estados, municípios, poder público e sociedade civil em comitês e agências de gestão por bacias hidrográficas. Sua preservação depende dessas novas formas de administração, integradas e participativas.


 


 


 


Águas nas lagoas


 


Nossas lagoas e lagunas fazem parte das maravilhas ameaçadas em todo o país. Assoreadas pelo carreamento de terra e lodo dos rios; poluídas por esgotos que vão formando camadas de lodo, no fundo, de onde emana gás sulfídrico; vítimas de freqüentes mortandades em massa de peixes, com suas margens e manguezais aterrados; desmatadas e ocupadas irregularmente por grileiros, nossas lagoas, salvo algumas exceções notáveis, apresentam um panorama sombrio. Muitas já desapareceram.


 


Toda lagoa ou laguna deve ter sua faixa marginal de proteção demarcada e protegida, suas áreas de mangue ou vegetação de restinga recompostas e seu fundo desassoreado e recomposto dentro de suas características naturais, por dragagens criteriosas, dentro de um planejamento e com todas as precauções ambientais em relação às áreas de bota-fora. Aquelas onde é forte a presença de lodo orgânico e gás sulfídrico devem ser objeto de uma aeração laminar, suave, capaz de estimular a proliferação natural de organismos vivos que irão consumir o lodo e melhorar o aspecto das águas, tornando-as mais atraentes ao banho. A supressão do lançamento de efluentes não tratados deve ser ainda mais rigorosa que nos rios e nas praias. Devem ser estabelecidas rotinas para a coleta diária de lixo flutuante, sobretudo plástico. Em lagoas que recebem rios e canais com muito lixo, redes e grades devem ser colocadas para retê-lo antes da lagoa num ponto onde possa ser facilmente recolhido. O uso recreativo deve ser estimulado pois ele é um alimentador da demanda pela preservação.


 


O tratamento biológico de efluentes com aguapé deve ser realizado sob rígido controle e manejo especializado para evitar proliferação incontrolada e contra-producente. É conveniente, salvo nas lagoas muito grandes, coibir ou regulamentar restritivamente os barcos a motor de grande potência e, sobretudo, os jet-ski. Devem ser implementados projetos de reconstituição subaquática e piscicultura, compatíveis com outros usos.


 


 


Águas de navegar


 


É necessário recuperar as águas como vias de transporte de passageiros, em cidades litorâneas, ribeirinhas, à margem de baias ou insulares. As barcas e os modernos catamarãs são alternativas de locomoção que contribuem para descongestionar as vias terrestres e oferecer uma modalidade segura e agradável de deslocamento, de carga, em hidrovias fluviais ou navegação costeira como alternativa ao transporte rodoviário.


 


Na concepção de hidrovias deve-se ter grande precaução com impactos ambientais como dragagens excessivas e retificações de cursos d’água que tenham como efeito a aceleração da velocidade das águas, o aumento da sedimentação e outras alterações capazes de provocar mudanças nocivas a montante ou jusante. Isso se aplica particularmente à delicada região do Pantanal. A maior contribuição ao transporte fluvial deve ser, na outra ponta, na concepção de tipos de embarcação que se adaptem às condições de um rio dado e não vice-versa.


 


 


Águas de irrigar


 


A irrigação, a princípio, é a redenção da agricultura em áreas atingidas pela seca ou de solo árido. Ela deve, no entanto, obedecer a uma análise de conjunto e não respostas pontuais. A transposição de rios, a construção de poços artesianos e outras medidas destinadas à favorecer à irrigação precisam ser submetidas ao crivo de uma análise mais abrangente em relação ao seu impacto ambiental e à sua sustentabilidade para além do curto prazo. Determinados projetos mal concebidos podem criar verdadeiras catástrofes ecológicas como a que esvaziou o Mar do Aral (ex-URSS).


 


Os projetos de irrigação e a drenagem das áreas agrícolas devem ser considerados também à luz do perigo que representa o carreamento de agrotóxicos, defensivos e adubos químicos de volta para os leitos dos rios e sua deposição nos reservatórios e lençóis freáticos onde se abastecem os trabalhadores agrícolas e suas famílias. Os projetos de irrigação devem também ter como critério o não desperdício e o respeito aos interesses e necessidades de quem mora jusante. Nos grandes reservatórios deve-se estimular a pluralidade de usos, inclusive os recreativos e de piscicultura.


 


 


Águas do subsolo


 


O desperdício, a má utilização e a crescente contaminação dos lençóis freáticos nas áreas urbanizadas é um problema a ser enfrentado preventivamente antes que seja tarde. O controle da contaminação do solo por derivados de petróleo, produtos químicos e tóxicos variados, susceptíveis de se infiltrarem no lençol freático é um dever que temos para com essas águas ocultas. Fazer levantamentos geológicos da quantidade de águas subterrâneas numa cidade ou região, das suas características e dispor dos números seguros para poder avaliar, regularmente, sua evolução, é uma obrigação do poder público e uma medida de prudência que devemos às futuras gerações.


 


A água é um recurso finito. Embora seja abundante em nosso país há regiões onde ela começa a escassear como resultado de práticas predatórias, mau planejamento e uso inadequado. Mesmo naquelas cidades onde o abastecimento provêm de rios caudalosos, ter um levantamento minucioso de suas reservas d’água e poder acessá-las, monitorá-las e, eventualmente, explorá-las alternativamente, é algo de que não se pode abrir mão.


 


 


Águas servidas


 


Quantos de nós brasileiros nos preocupamos com a água nossa de todo dia, quando não falta nem está poluída? Quantos nos sentimos co-responsáveis por ela? O desperdício de água no nosso país é imenso. Caricatural, assustador. Intolerável. Há cidades brasileiras onde mais de 50% da água é perdida, na rede, no percurso entre a estação de tratamento e cloração e a torneira do usuário. O desperdício doméstico, comercial e industrial também é imenso.


 


Economizar água raramente é um critério exigido nos procedimentos e rotinas produtivos, comerciais e de asseio público. Os equipamentos: torneiras, descargas, etc… não foram concebidos para economizar água. Nossos hábitos, desde o anódino fazer a barba com a água correndo até o desperdícios ao lavar o carro, são perdulários. Combater rigorosamente os vazamentos na rede pública e nas dependências particulares, adotar uma nova geração de equipamentos com tecnologia apropriada à economia e mudar os hábitos de desperdício é um grande desafio. As águas parecem infinitas mas não são. A não ser que decidamos torná-las.

Fonte: Site da Fundação Onda Azul