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Meu amigo Fidel

Frei Betto*

 

Perco um grande amigo. Nosso último encontro foi a 3 de agosto, quando completou 90 anos. Recebeu-me em sua casa, em Havana, e, à tarde, fomos ao Teatro Karl Marx, onde um espetáculo musical o homenageou. Embora tivesse o organismo debilitado, caminhou sem apoio da entrada do teatro à sua poltrona.

Com Fidel, desaparece o último grande líder político do século XX, o único que logrou sobreviver mais de 50 anos à própria obra: a Revolução Cubana. Graças a ela, a pequena ilha deixou de ser o prostíbulo do Caribe, explorado pela máfia, para se tornar uma nação respeitada, soberana e solidária, que mantém profissionais da saúde e da educação em mais de cem países, inclusive o Brasil.

Conheci Fidel em 1980, em Manágua. O que primeiro chamava atenção era sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. A impressão era de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Quando ingressava num recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Todos ficavam esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema da conversa, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que sua presença era uma a mais e que o tratariam sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia. Certa ocasião, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, de quem era grande amigo, perguntou se ele sentia falta de algo. Fidel respondeu: “De ficar parado, anônimo, numa esquina.”

Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o seu timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores tinham de apurar os ouvidos. E quando falava, não gostava de ser interrompido. Porém, não monopolizava a palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Desde que não fossem encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas, Fidel não sabia receber uma pessoa por dez ou vinte minutos.

A convite de Fidel e dos bispos de seu país, atuei no resgate da liberdade religiosa em Cuba, facilitado pela entrevista contida no livro Fidel e a religião (Fontanar), na qual o líder comunista aprecia positivamente o fenômeno religioso.

Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com Fidel. Uma curiosidade é que este homem, capaz de entreter a multidão por três ou quatro horas, detestava, como eu, falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho sempre foi muito sucinto.

Minhas frequentes viagens a Havana estreitaram nossos laços de amizade. No prefácio que generosamente escreveu para a minha biografia, lançada esta semana pela Civilização Brasileira, Fidel ressalta que defendo Cuba “sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos”. Na década de 1980, quando expressei críticas à Revolução, o Comandante frisou: “É seu direito. E mais: o seu dever”.

Todas as vezes que eu o visitava em sua casa, depois que deixou o governo, levava-lhe chocolates amargos, seu preferido, castanhas e livros em espanhol sobre cosmologia e astrofísica. Conversávamos sobre a conjuntura política mundial, a sua admiração pelo papa Francisco e, em especial, sobre cosmologia. Contei-lhe que ao visitar Oscar Niemeyer, pouco antes da morte do arquiteto brasileiro, já centenário, este me disse, animado, que toda semana reunia em seu escritório um grupo de amigos para receber aulas de cosmologia. O fato de dois eminentes comunistas se interessarem tanto pelo tema, comentei com Fidel, me fez recordar uma cena do filme “A teoria de tudo”, no qual o protagonista do famoso físico inglês Stephen Hawking, ainda estudante em Cambridge, pergunta à jovem com quem iniciava o namoro: “O que você estuda? Historia, ela responde, e devolve a curiosidade. Ele informa: Estudo cosmologia. O que é isso?, indaga ela. E ele frisa: uma religião para ateus inteligentes.”

Tenho para mim que Fidel, aluno interno de colégios religiosos ao longo de dez anos , abandonou a fé cristã ao abraçar o marxismo. De alguns anos para cá deixou-me a nítida impressão de que se tornara agnóstico. Várias vezes me pediu, ao nos despedirmos: “Ore por nós.” Tenho certeza de que Fidel transvivenciou feliz com a sua coerência de vida.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros. www.freibetto.org twitter: @freibetto

 


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Ideias das classes dominantes

grafico_artigomax-03Desde que os homens saíram das cavernas até sua organização em sociedade, muitos conceitos e costumes foram criados, substituídos, desapareceram ou evoluíram.

Mesmo com mudanças, invariavelmente, “as ideias da classe dominante são as ideias dominantes”, como bem observou Karl Marx.
Por isso, independentemente da época, a história sempre foi escrita do ponto de vista dos “dominantes”. No passado os povos, atualmente o capitalismo. Por exemplo, nos livros escolares os espanhóis são os “conquistadores”, os ingleses “colonizadores”. Tanto um quanto outro, assim como os portugueses foram, verdadeiramente, dizimadores de nações com cultura e costumes próprios. Mas isto não é ensinado.

A cobiça do homem sempre gerou inúmeras guerras e mortes. O devaneio de ser dono do mundo existe, continua vivo e está posto em prática pelo sistema e deveria ser inimaginável que as 62 pessoas mais ricas do mundo têm o mesmo – em riqueza que toda a metade mais pobre da população global.grafico_artigomax-02

Isto é um absurdo!

Este sistema sempre foi excludente e desde sempre passou a produzir consensos para sua ideologia ser aceita. E para tal, o capitalismo se apropriou da política e dos meios de comunicação, hoje denominado como mídia. “O sistema age através de grandes conglomerados para massificar o seu pensamento e assim o transforma em ‘opinião pública” suas referências e identidade.

• Fim dos programas sociais, porque todos têm oportunidades iguais (meritocracia).
• Criminalização da luta por direitos, portanto a polícia deve repreender estes criminosos (militantes de movimentos sociais e sindicais).
• Valorização do indivíduo em detrimento à coletividade na qual o trabalhador/a se torna colaborador/a.

E nesta desconstrução contínua, o/a trabalhador/a perde a noção de classe, de categoria a ponto de transferir as suas questões para o dirigente sindical.

• Quanto o sindicato está pedindo?
• Quando será a greve do sindicato?

Assim chegamos à nossa Campanha Nacional dos Bancários, que foi vitoriosa, apesar da conjuntura política e econômica adversa.

Apesar dos bancos lucrarem em todo e qualquer cenário conseguimos vencê-los com luta e resistência!

Porque a luta dos bancários/as em muitas cidades e locais deste imenso país é uma referência para diversos sindicatos, movimentos sociais e para classe trabalhadora. Pois a greve ou de participação em qualquer atividade de luta por direitos e cidadania deve ser um estado de consciência. Não de imposição, mas voluntário com o entendimento que só a luta traz avanços. Uma vez que no capitalismo não há, houve ou haverá benevolência de qualquer patrão.

E, enquanto esta conscientização não chega, diversos companheiros das mais variadas categorias e lutas se unem à luta dos bancários. São os vigilantes, metalúrgicos, trabalhadores do vestuário e têxteis, professores, agricultores sem-terra, militantes e ativistas sociais… que colaboram conosco nas agências, departamentos e centros administrativos, porque a solidariedade da classe trabalhadora transcende ao individualismo do sistema.

Se há incompreensão que outros trabalhadores não devem estar inseridos nas nossas lutas e a nossa categoria em outras questões, significa um retrocesso.

Afinal, decisão sobre os rumos da nossa categoria sempre estará em nossas mãos, mas a busca pela utopia de um mundo mais justo e menos desigual pertence a todos/as sem distinção de categoria, de etnia, de opção sexual, religiosa e filosófica.

Sigamos juntos, lado a lado, à esquerda e em frente!

 

* Max José Neves Bezerra é bancário do Itaú e presidente do Sindicato dos Bancários de Nova Friburgo

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Conjuntura aponta para elevação do preconceito e ataques às ações afirmativas

Almir Aguiar *

 

Fica cada vez mais evidente que a atual conjuntura política de nosso país é desfavorável aos interesses dos trabalhadores, à soberania nacional, ao desenvolvimento econômico e social e ao processo de combate a toda forma de preconceito e discriminação. O golpe que levou Michel Temer ao poder e a formação de seu governo marcado pela ausência quase que completa de trabalhadores, mulheres, negros e homoafetivos nos principais cargos da administração pública da União, deixaram claro o perfil e o lado da elite política que se instalou no Palácio do Planalto.

A atual conjuntura de ataques aos direitos dos trabalhadores e aposentados, de corte nos investimentos sociais e de extinção de ministérios e secretarias de combate ao racismo, à homofobia e à violência contra a mulher revelam uma conjuntura que aponta para a elevação do preconceito e da desigualdade. Por isso, atacam os projetos de avanços promovidos nos últimos anos. O avanço das forças políticas atrasadas aprofunda a lógica de um Brasil desigual e discricionário.

Negros discriminados

A população negra, em pleno século XXI, continua sendo discriminada. Segundo dados colhidos em 2014, no Brasil, apenas 24,7% dos trabalhadores nos bancos são negros. Os brancos representam cerca de 83% da parcela mais rica da sociedade. Isto num país em que 53,6% da população é formada por negros e negras.

Estas anomalias sociais vinham sendo combatidas, nos últimos anos, através das chamadas políticas de ações afirmativas, como a de cotas em universidades, e por programas sociais e elevação do ganho real do salário mínimo e dos ganhos reais dos trabalhadores, avanços reconhecidos internacionalmente. Apesar disto, o tempo mostrou que estas medidas, embora sejam imprescindíveis, ainda não são suficientes para mudar o quadro de desigualdade social, que passa essencialmente pela questão racial. Em 2004, 73,2% dos mais pobres eram negros, patamar que aumentou para 76% em 2014. Esse número indica que três em cada quatro pessoas que estão na parcela dos 10% mais pobres do país são negras. Já os brancos eram 26,5% dos mais pobres em 2004 e sua participação nessa fatia da população caiu para 22,8% em 2014.

Neste mês de comemoração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), chamamos a todos para uma reflexão crítica sobre esta conjuntura política e para a necessidade de unidade dos trabalhadores. É preciso impedir a consolidação deste projeto de autoria das mesmas oligarquias que mantiveram, durante séculos, o nosso povo na miséria, excluído do processo de desenvolvimento econômico e acumulação das riquezas de nosso país, produzidas por este mesmo sujeito histórico espoliado, a classe trabalhadora. Nossa missão é mobilizar à sociedade para barrar este projeto que vai aprofundar a exclusão, a discriminação, a miséria e a injustiça social.

 

* Almir Aguiar é bancário do Bradesco e Secretário de Combate ao Racismo da Contraf-CUT

 

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Cassi: por que é importante votar a favor da proposta para redução do déficit

Rita Mota*

 

A crise na Cassi se aprofundou e provocou um déficit muito alto, que trouxe a necessidade de recorrer a medidas emergenciais. Uma proposta de sustentabilidade foi negociada por dois anos entre o BB e os sindicatos e entidades associativas do funcionalismo. O resultado destas negociações será submetido à consulta dos usuários a partir deste dia 11.

A Comissão de Empresa do BB e as entidades associativas defendem o voto SIM, aprovando a proposta. Com a aprovação, será instituída uma contribuição extraordinária e temporária de 1% dos vencimentos/proventos por parte dos associados até dezembro de 2019. Este aporte extra tem como objetivo garantir que a Cassi continue funcionando. Sem esta medida, nossa Caixa de Assistência não terá como pagar pelos procedimentos médicos dos associados. Nosso acesso às consultas, exames, cirurgias e tratamentos ficará comprometido, como já aconteceu no passado.

Em contrapartida, o BB vai fazer um ressarcimento mensal no valor de R$ 23 milhões durante o mesmo período, para cobrir despesas dos programas vigentes, coberturas especiais e estrutura própria – as CliniCassis. Este valor será reajustado anualmente, de acordo com índice oficial de medição da inflação. Tanto a contribuição extraordinária dos associados quanto os ressarcimentos por parte do banco podem ser suspensos antes do fim do prazo de vigência do acordo, em duas datas pré-definidas.

Caso os associados aprovem a proposta, será contratada – às custas do BB – uma consultoria para fazer um raio-x da situação da Cassi, apontando o que pode ser melhorado, sobretudo, na parte administrativa. O objetivo é que o diagnóstico que vai resultar desta consultoria aponte onde estão os “ralos” por onde escoam os recursos e onde os processos podem ser aprimorados, para permitir um atendimento mais ágil ao usuário.

A proposta não resolve os problemas financeiros, mas sua aprovação nos dará condições de manter a Cassi funcionando enquanto se busca e constrói uma solução permanente. É preciso que fique bem claro que o voto SIM não representa uma fórmula mirabolante para a Cassi, mas apenas um paliativo que garanta a continuidade do atendimento.

O déficit é grande e, enquanto as negociações da proposta de sustentabilidade estavam acontecendo, a solução para a falta de recursos foi tomar empréstimos junto ao Banco do Brasil, que vem cobrando juros de mercado. Com isto, sai mais caro para os associados pagar estes empréstimos do que criar a contribuição extraordinária de 1%.

Ao contrário do que dizem alguns, esta proposta não foi negociada sem o conhecimento do funcionalismo. As negociações começaram em 2014 e, em duas ocasiões, as propostas do banco foram recusadas na mesa. Durante todo o processo os jornais e informativos dos sindicatos e associações divulgaram as negociações em seus veículos, digitais e impressos. Além disso, a Cassi – ao lado da Previ – são os dois tópicos mais discutidos nos encontros regionais e no Encontro Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil.

Não podemos ser ingênuos de pensar que a vitória do “Não” vai inaugurar uma era de mobilizações dos funcionários do BB para a construção de nova proposta. A que foi apresentada no dia 05 de setembro já passou por vários momentos e, mais de uma vez, a oferta do banco foi rejeitada em mesa pelas entidades dos trabalhadores. Além disso, a aprovação de uma proposta depende imensamente da boa vontade do banco, daí estes processos serem tão longos. Portanto, não se pode esperar que uma proposta excelente, construída a partir da base, com participação direta dos funcionários, será aceita pela direção do BB.

A aprovação da proposta que foi negociada não é o fim da linha. Já no dia seguinte ao encerramento da consulta é preciso que todos os associados passem a fiscalizar a Cassi, acompanhando os procedimentos médicos utilizados pelos próprios e por seus dependentes. É necessário, também, cobrar do banco que selecione e contrate a consultoria logo em seguida, para que os problemas de gestão possam ser sanados o quanto antes. E, por fim, devemos nos organizar para apresentar propostas e sugestões para um novo acordo que dê conta de sanear as finanças da Cassi e garantir a continuidade do atendimento aos associados.

Clique aqui e veja a íntegra da proposta.

Como votar:

Podem participar desta consulta associados em pleno gozo de seus direitos junto à CASSI em 31/08/2016, conforme o Estatuto Social da CASSI. Aposentados até 31/08/2016 votam pelos TAA e funcionários da ativa naquela data votam pelo Sisbb.

 

 

* Rita Mota é representante titular da base da Fetraf-RJ/ES na CEE/BB

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Trump, caixa de surpresas

Frei Betto*

 

Nero pôs fogo em Roma; Hitler na Europa; e pode ser que Trump venha a incendiar o mundo. Não sou fã de Hillary, mas a considero menos pior. Por conhecer bem os dois candidatos é que quase metade do eleitorado dos EUA se absteve.

Como desmiolado, predador sexual, racista e xenóbofo, tudo se pode esperar de um biliardário, dono de cassino, que jamais ocupou qualquer função política. Até que não cumpra suas ameaças de campanha, como a de construir um muro na fronteira de seu país com o México, como se isso fosse evitar a entrada de novos imigrantes.

O fato é que os pobres votaram em Trump. Porque Obama não cumpriu quase nenhuma de suas promessas. E por que imigrantes latinos que vivem nos EUA deram preferência a ele? Porque muitos votam de olho no próprio umbigo. Temem que a chegada de novos estrangeiros possa roubar-lhes os postos de trabalho.

Em 2017, Trump vai dispor de um orçamento de US$ 583 bilhões para despesas militares. O suficiente para erradicar a fome no mundo e resolver o drama dos refugiados que aportam na Europa. Mas com certeza o novo presidente estadunidense não está preocupado com os males que afetam os pobres do mundo. Como declarou ao vencer, quer dobrar o PIB dos EUA. E, na campanha, incluiu entre seus arroubos xenófobos a promessa de que fará as tropas de seu país abandonarem os conflitos externos. Esta seria uma boa medida.

Os EUA possuem uma tropa de 1 milhão e 492 mil homens e mulheres, e mais 1 milhão de reservistas prontos a uma eventual convocação. A soma de seus drones, navios de guerra, porta-aviões, tanques, blindados, canhões e mísseis (7 mil ogivas nucleares) supera o conjunto de arsenais das outras quatro maiores potências militares: China, Reino Unido, França e Rússia.

A esperança dos eleitores de Trump é que ele aplique mais recursos no combate ao desemprego, nos serviços de saúde e reaqueça a economia interna. Pode ser que, num gesto de lucidez, ele reduza o orçamento militar para tentar passar à história como o presidente que tirou os EUA da recessão. Hoje, a classe média estadunidense tem  renda muito inferior à que tinha na década de 1980.

Felizmente, Tio Sam não é dono do mundo. Há um equilíbrio que o obriga a levar em conta a China e a Rússia. Dizem que Trump e Putin se entendem… O fato é que o magnata-presidente já elogiou o controle que Putin tem sobre a Rússia. E deu a entender que os EUA não têm nenhum obrigação de defender incondicionalmente seus aliados na Otan. O que soa como música aos ouvidos de Putin.

Ainda bem que, em meio a tantos interesses em jogo, há quem ainda raciocina, não por interesses, mas a partir de princípios, como o papa Francisco. Ele é, hoje, o único líder mundial capaz de aglutinar homens e mulheres que buscam a paz como fruto da justiça e um mundo menos desigual e injusto.

A vitória de Trump me faz lembrar que Hitler também não chegou ao poder por golpe de Estado, como Temer, para citar um exemplo recente. Foi democraticamente eleito pelo povo alemão. E deu no que deu…

Enquanto o dinheiro presidir a democracia, esta será, na expressão ianque, apenas um pato manco.

 

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto

 


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Nem leão, nem gazela

Clemente Ganz Lúcio *

 

“Todas as manhãs, a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr.”
Provérbio africano.

 

As iniciativas de flexibilização da legislação trabalhista estão novamente na agenda prioritária dos empresários, do governo federal e do Congresso Nacional. Neste artigo, será feita breve reflexão sobre o sentido histórico desse movimento e os riscos que ele traz para o padrão civilizatório construído pela sociedade brasileira.

Dois séculos de disputas

É por meio do trabalho que as sociedades produzem o bem-estar e a qualidade de vida. Desde a revolução industrial, no século XIX, a economia capitalista transforma o trabalho em mercadoria (mão de obra) a ser comprada livremente para ser empregada na produção. Desde então, os trabalhadores lutam para se libertar das amarras que os aprisionam nos limites da sociedade de mercado. Regular as relações sociais de produção por meio das leis e dos acordos coletivos visa colocar limites à livre exploração dos trabalhadores.

Nesses quase dois séculos, a engrenagem de produção capitalista aumentou a produção da riqueza, viabilizou a acumulação de capital e promoveu a desigualdade e, muitas vezes, a pobreza. A sociedade de mercado gestou a questão social e a economia de mercado, a luta de classes.

Os trabalhadores desenvolvem, em cada tempo histórico, diversas formas de lutas para disputar as regras que regem a produção e a distribuição da riqueza e da renda. Duas grandes guerras fizeram emergir na Europa, no pós-45, a consolidação do Estado moderno, a democracia e os pactos sociais que combinaram a acumulação de capital com estratégias distributivas, de tal modo que a era de ouro do capitalismo conformou, em 30 anos, um sistema tributário progressivo, com políticas sociais de promoção e proteção social e laboral. A disputa distributiva e regulatória ganhou centralidade na sociedade, com legislação protetora e organização social, especialmente o sindicalismo, capaz de representar interesses. As negociações coletivas ganharam importância como mecanismo regulador das relações de trabalho e os sindicatos conseguiram o direito de representação coletiva e de organização desde o local de trabalho.

Os empresários constroem, desde sempre, uma resistência à expansão da regulação. Nos anos 1970, já eram visíveis os sinais de que fariam tudo para dar o troco ao modelo regulatório que emergiu no pós-guerra. Conformaram nova força econômica, política e social, denominada neoliberalismo, comandada pelas grandes corporações transnacionais e, especialmente, pelo sistema financeiro e rentista. Ronald Reagan e Margareth Thatcher são baluartes desse movimento, que se tornou hegemônico em quase todo o mundo. Os neoliberais prometem entregar crescimento econômico, vendem felicidade, exacerbam o individualismo e a meritocracia. Não entregam o crescimento. Ao contrário, provocaram a monumental crise de 2008, promovem o aumento vertiginoso da desigualdade, exacerbam o individualismo que adoece uma sociedade conectada e que vive a solidão, a depressão e o acirramento dos conflitos sociais.

Afirmam, com convicção divina, que é necessário competir, reduzir o custo do trabalho, diminuir o tamanho do Estado, aliviar a carga tributária e reduzir impostos, liberar o acesso aos mercados, limitar o direito de representação coletiva e o papel das instituições. Coagir, reprimir, cooptar são verbos que os neoliberais precisam conjugar, instrumentos necessários para o convencimento, renovados todas as manhãs quando acordam. Adoram uma sociedade de leões e gazelas, com a certeza de que são leões e de que não morrerão de fome.

Gazelas, comecem a correr

Há 30 anos, a lógica neoliberal busca desregular o mercado de trabalho para reduzir o custo do trabalho, flexibilizar as regras que promovem e protegem os empregos e os direitos laborais, diminuir o poder de proteção coletiva dos sindicatos e aumentar o poder de coerção das empresas sobre os trabalhadores. As crises e o desemprego criam ambiente favorável para o alcance desses objetivos. Tem sido assim na Europa. Agora, passa novamente a ser assim no Brasil.

É preciso lembrar que, nos anos 1990, dezenas de iniciativas legislativas desregularam direitos trabalhistas, criaram formas precárias de contrato de trabalho, de flexibilização da jornada de trabalho sem pagamento (banco de horas) etc. A terceirização foi uma grande sacada e passou a ser uma maneira estrutural de reduzir custos, transferir riscos e fragilizar a ação sindical. Precarização, informalidade, arrocho salarial, desemprego, desigualdade, pobreza são expressões desse movimento que agora retorna.

As lutas sociais no Brasil acompanharam a disputa regulatória que os trabalhadores fizeram mundo afora. Avançou-se na produção social e política de uma legislação de proteção laboral e sindical reunida na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), bem como na estruturação de um sistema de relações de trabalho que, por meio da negociação coletiva, representa o interesse coletivo dos trabalhadores e avança na formatação dos direitos laborais. Em 1988, a ditadura civil-militar foi superada com um conjunto de novas regras que se consolidaram na Constituição. Ambas, Constituição e CLT, têm sido permanentemente alteradas.

Os sindicatos sempre apostaram nas negociações e na prevalência do acordado, sempre que é superior ao legislado. É assim que, há décadas, a negociação coletiva promove, de maneira incremental, avanços nos direitos laborais.

Agora, mais uma vez, os empresários propõem reformas na legislação para que o negociado prevaleça sobre o legislado e se faça a modernização da legislação trabalhista. Para eles, modernizar é sinônimo de flexibilidade para reduzir, desmontar e desmobilizar o padrão civilizatório duramente construído. Negociar, para eles, é aumentar a capacidade de submeter e enquadrar, para que o acordado possa reduzir aquilo que a legislação define como piso.

Não somos nem leões nem gazelas. A inteligência (pensamento e memória) e a história (conhecimento de si e do outro) permitem desenhar projetos de futuro e de sociedade nos quais a igualdade, a liberdade, a justiça, a cooperação e a solidariedade deem outro sentido para as manhãs.

Por isso, o movimento sindical luta para: modernizar a legislação trabalhista a fim de incluir aqueles que ainda estão desprotegidos e criar novas regras para as ocupações que surgem; fortalecer as negociações coletivas; coibir a fragmentação sindical; ter organizações sindicais representativas desde o chão da empresa; garantir uma institucionalidade que promova a solução ágil dos conflitos; ampliar direito de greve e de organização; que todos os trabalhadores estejam protegidos pelas leis laborais e previdenciárias, pois um terço ainda está sem nenhuma proteção.

O movimento sindical acredita que, na democracia, as escolhas se fazem pelo debate público, capaz de afirmar o sentido geral e o bem comum de cada dimensão da vida em sociedade, pela ampla participação, pela capacidade coletiva de corrigir erros e de aprender.

 

 

* Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).

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O presidente do mundo

Frei Betto*

 

Na próxima terça, os eleitores estadunidenses votam no sucessor de Obama. De fato, votam, mas não elegem. Quem elege o presidente dos EUA é o sistema financeiro. Ele decidirá se o governo do mundo, hoje com sede em Washington, terá como principal lobista o republicano Trump ou a democrata Hillary.

Em 2014, a Suprema Corte dos EUA decidiu liberar o financiamento de campanhas eleitorais por empresas e bancos. Assim, eles investem pesado no processo eleitoral, confiantes de que terão satisfatório retorno após as eleições. Como declarou um dos magnatas, “quero pegar o telefone e ter certeza de que serei atendido.” Razão pela qual Hillary não se posiciona contra a guerra, pois seu caixa de campanha é engordado pelos dólares da indústria bélica.

Até 19 de outubro, a campanha de Hillary arrecadou US$ 360 milhões e, a de Trump, US$ 147 milhões, dos quais US$ 10 milhões ele tirou do próprio bolso.

Nem louco rasga dinheiro. Se empresas e bancos abastecem o caixa dos candidatos é porque o eleito haverá de retribuir em dobro. Em suma, o governo dos EUA tem, como prioridade, não o bem-estar de seu povo, e sim os lucros dos bilionários doadores em campanhas eleitorais.

O francês Alexis Tocqueville, após viajar pelos EUA na primeira metade do século 19, constatou que o governo daquele país “é mais centralizado e enérgico do que as monarquias absolutistas da Europa.”

Há quem qualifique o governo estadunidense de “democradura”. Ele intervém em quase todos os países do mundo, e as revelações de Snowden comprovaram que seus serviços de segurança grampeiam telefones até mesmo de chefes de Estado, como aconteceu com Dilma, do Brasil, e Merkel, da Alemanha.

O grande motor da economia dos EUA é a indústria bélica. O que explica o fato de desde 1776, quando foi fundado, os EUA, com uma história de 240 anos de existência, estarem envolvidos em guerras no decorrer de 219 anos. Ou seja, apenas 21 anos de paz!

Hoje, a grande preocupação de Washington é com o fato de o mundo já não ser unipolar, como se esperava finda a Guerra Fria. A crise econômica do capitalismo coincide com o fortalecimento da China, da Rússia e da Índia, que são também potências nucleares. E os EUA sabem que, deflagrada uma guerra nuclear, estarão em desvantagem, pois sua população é de apenas 319 milhões (4,43% da população mundial), comparada à da China, de 1,4 bilhão (19,3% da população mundial).

Este outro dado faz com que Tio Sam fique com as barbas de molho: desde a Segunda Grande Guerra, ele não venceu mais nenhuma. Foi derrotado no Vietnã e saiu com o rabo entre as pernas de suas fracassadas intervenções no Iraque, no Afeganistão e, agora, na Síria.

Enquanto o dinheiro ditar as regras da política não haverá democracia. O Brasil deu um passo importante ao proibir o financiamento de campanhas por empresas e bancos. Resta, agora, coibir o caixa dois.

Para quem se interessa pela atual conjuntura global, recomendo o livro “A desordem mundial”, de Luiz Alberto Moniz Bandeira (Civilização Brasileira).

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto

 

 


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Cinzas dos mortos

Frei Betto *

 

Há quem, ao chegar à cúpula do poder, se deixa embriagar pelas alturas. O Vaticano acaba de proibir que as cinzas de defuntos cremados sejam jogadas na natureza por seus parentes católicos. Só faltava esta: doutos cardeais do Vaticano preocupados com o destino que damos às cinzas de nossos mortos! Até parece que andam de conchavos com a máfia das funerárias.

Bem fez a Luiza Erundina, quando prefeita de São Paulo, que estatizou o serviço funerário. Nunca soube de um vivo, na capital paulista, reclamar do tratamento dado a seu morto. Tudo funciona bem, exceto a ameaça do prefeito eleito, movido a apetite privatizador, de acabar com o monopólio municipal dos funerais.

Minha mãe, falecida em 2011, deixou explícito que desejava ser cremada, pois o túmulo da família se encontra em um cemitério infestado de baratas, das quais ela tinha horror. “Nem morta!”, exclamava. Orientou os filhos a espargir suas cinzas no mar de Copacabana, bem defronte ao mais famoso hotel da orla. Não por requinte post-mortem, e sim porque ali ela viveu momentos felizes. Com o privilégio de poder vestir o maiô e tomar banho no Copacabana Palace, já que a filha do dono era casada com o primo dela.

Agora, os senhores cardeais da Cúria Romana proíbem espalhar cinzas dos mortos na natureza. “Para evitar qualquer tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não é permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra, na água ou de outro modo”, afirma o documento. Deveriam, sim, é estar ocupados com a excomunhão post-mortem do legendário mexicano Marcial Maciel, ultramontano pedófilo e corrupto, e não em prescrever, urbi et orbi, que as cinzas de mortos católicos devem ser depositadas em cemitérios.

A cremação é permitida pela Santa Sé desde 1963. E o documento agora divulgado frisa que “a Igreja não tem razões doutrinárias para impedir tal praxe, já que a cremação do cadáver não atinge a alma e não impede a onipotência divina de ressuscitar o corpo.” Ora, será que ainda o dualismo platônico não foi incinerado pelo Vaticano? Afinal, a alma não é uma joia virtual guardada no receptáculo chamado corpo. Segundo a ciência, toda matéria, incluído o nosso corpo, é energia condensada. E de acordo com a teologia, a alma é a nossa semelhança com o divino, do qual somos morada, na expressão de Jesus.

Quem paga a conta para armazenar cinzas em cemitérios? Jogá-las junto à muda de uma árvore frondosa, como fizemos com as do jornalista Sérgio de Souza, na fazenda de Raduan Nassar, foi bem mais litúrgico do que enfiá-las numa caixa e desembolsar o custo funerário.

Aliás, será que aquelas cinzas eram mesmo de minha mãe e do Serjão? Ouvi dizer que é muito caro elevar a temperatura a 1,2 mil graus centígrados para cremar um defunto. Para economizar dinheiro e energia, há crematórios que esperam juntar uns tantos falecidos para, então, transformá-los em cinzas. Por isso nunca elas são entregues no mesmo dia à família. O caixão desce ao som de uma trilha musical e fica ali nos porões à espera de seus companheiros de fornalha.

Parece que a preocupação dos doutos cardeais é com certos ritos fúnebres, eivados de sincretismo, celebrados na África. Ora, já que a questão é limpar o terreno católico de eventuais impurezas, a faxina deveria começar pelo próprio Vaticano: rebatizá-lo com um nome menos pagão, pois Vaticano deriva do deus etrusco Vagitanus, que abria a boca do bebê para ele dar o primeiro grito; livrar a guarda suíça daquela roupa de pajem medieval; proibir o uso anacrônico de batinas; e obrigar os cardeais romanos a seguirem o exemplo do papa Francisco e, em suas espaçosas residências, abrigarem ao menos uma família de refugiados.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter: @freibetto

 

 


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Sobre a proposta do BB para a Cassi

William Mendes *
A Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil, a maior autogestão do país, com gestão compartilhada entre os patrocinadores Banco e Associados, está em mesa de negociações entre as partes para buscar soluções de equilíbrio econômico-financeiro no plano de saúde dos funcionários da ativa, aposentados, pensionistas e dependentes.

Como gestor eleito pelos associados, nossa opinião é de que o objetivo central das negociações, desde que procuramos as entidades sindicais e representativas no final de 2014 para construir um calendário de mobilização e lutas unitárias, sempre foi o de manter os direitos conquistados ao longo da história de mais de 70 anos de existência da Caixa de Assistência; e alcançar a sustentabilidade da entidade de saúde mantendo o modelo de custeio solidário e cumprindo sua missão de “assegurar ações efetivas de atenção à saúde por meio de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação para uma vida melhor dos participantes”.

Os dois patrocinadores associados da entidade de saúde definiram nas duas últimas reformas estatutárias, em 1996 e em 2007, o modelo de custeio baseado em contribuições por parte do Banco do Brasil (4,5%) e dos associados (3%) sobre a remuneração e benefícios dos associados, incluindo o 13º salário. Também definiram o Modelo de Atenção Integral à Saúde e a Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixos norteadores para que a Cassi deixasse de ser uma mera pagadora de contas hospitalares e assistenciais vindas dos prestadores de serviços no mercado de saúde.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi lançada em 2003, após estudos e definições das governanças compartilhadas da operadora desde 1996. A Cassi passou a perseguir objetivos ousados de reorganização de seu sistema de serviços de saúde com a constituição de uma estrutura própria de atenção à saúde, as CliniCassi, e também uma estrutura administrativa nos estados, além de uma Central de Pagamentos e uma Central de Atendimento 0800.

A organização dessa estrutura é central para o sucesso do Modelo de Atenção Integral à Saúde, com objetivos de atender a mais de 700 mil vidas assistidas em todos os estados brasileiros e localizadas em todos os municípios onde o Banco do Brasil estiver e onde seus funcionários da ativa, aposentados, pensionistas e dependentes estiverem.

Com o passar das duas últimas décadas, ou seja, entre os anos de 1996 e 2016, grandes mudanças ocorreram no setor de saúde brasileiro. Há uma forte crise no setor de saúde suplementar (os planos de saúde) e o setor de saúde complementar (os prestadores de serviços de saúde) passa por mudanças e reorganizações “agressivas” no sentido de busca de maior lucro e retorno financeiro sobre os usuários do sistema e seus planos de saúde.

Faço essa introdução em nosso artigo de opinião sobre a proposta final apresentada em 05/09/16 pelo patrocinador Banco do Brasil para solucionar a questão do déficit no Plano de Associados da Cassi porque qualquer proposta econômica e financeira e também estruturante precisa conter soluções que deem conta da complexidade envolvida na gestão da saúde, tanto pública quanto privada. E na reorganização de sistemas de saúde, como nós da Cassi nos propusemos a realizar desde a reforma estatutária de 1996 é fundamental compreender essa complexidade.

UM MANDATO FOCADO EM DAR INFORMAÇÕES AOS ASSOCIADOS E ENTIDADES DA COMUNIDADE BB

Estamos há mais de dois anos levando informação qualificada a cada participante, a cada liderança dos associados e ao patrocinador BB e seus representantes a respeito das questões envolvidas nessa missão ousada que nós mesmos nos demos ao aceitarmos o desafio de definir que faríamos Atenção Integral à Saúde em mais de 700 mil participantes.

Esta contribuição deste Diretor de Saúde e de sua equipe é uma continuação do artigo de opinião e avaliação que fizemos em 01/09/16 (leia AQUI), quando publicamos um texto abordando a proposta inicial que havia sido feita pelo Banco do Brasil em 22/08/16.

DEFENDO APROVAÇÃO DA PROPOSTA PORQUE ELA TRAZ PERSPECTIVAS DE LUTAR PELA AMPLIAÇÃO DO MODELO DE ATENÇÃO INTEGRAL E ESF AO INJETAR RECURSOS EXTRAS ENTRE 2017 E 2019

Nós acreditamos que esta proposta apresentada pelo Banco do Brasil contém avanços importantes, se considerarmos a feita no final de 2014, ainda no âmbito da Cassi e que propunha aumento de contribuição só por parte dos associados, e diversas reduções de direitos ou aumentos de coparticipações, suspensão de programas de saúde, além da criação de franquia sob internação. Também entendemos que esta proposta é melhor que a de maio de 2015, quando foi aventada a transferência de responsabilidade atuarial do pós-laboral do BB para o próprio Plano de Associados através de um fundo de cerca de 6 bilhões, além de sugerido um rateio de eventuais déficits operacionais só aos associados, quebrando a solidariedade e onerando os mais idosos, os grupos familiares e os que tivessem utilizado mais o plano.

A proposta de ressarcimento por parte do Banco do Brasil em 23 milhões/mês mais os 17 milhões/mês por parte dos associados em contribuição extraordinária de 1%, totalizando 40 milhões/mês é uma receita importante até dezembro de 2019, caso aprovada pelo Corpo Social. Os 480 milhões por ano podem amenizar o déficit operacional do Plano de Associados; mas a receita extra sozinha não é suficiente para enfrentar uma das maiores causas do déficit: a Cassi seguir até hoje sendo uma pagadora de serviços de saúde comprados no mercado a preços cada dia mais impagáveis, e sem garantia de bom atendimento e resolutividade para os associados do plano.

A melhor perspectiva de solução para o uso dos recursos da Cassi está em avançar reorganizando o sistema de saúde que criamos, com o fortalecimento do próprio Modelo Assistencial da entidade, que tem um público mais estável que o mercado e que tem boas possibilidades de fornecer Atenção Integral e Estratégia Saúde da Família (ESF) ao seu universo de assistidos, monitorar a população já adoecida, evitar novos adoecimentos e agravamentos e usar a Rede Credenciada com mais racionalidade e eficiência.

Nós temos feito palestras, debates, textos aqui no blog e boletins informativos para dar noções sobre os diversos fatores que afetam a sustentabilidade dos planos de saúde da Cassi, principalmente o Plano de Associados. Temos explicado os porquês de dificuldade de equilíbrio entre receitas e despesas, lembrando que a maior parte das causas são externas à Cassi, vêm do mercado de saúde. Por exemplo, não é aprovando essa proposta de aumento de receitas que vamos suprir especialidades médicas ou alguns prestadores na rede credenciada em algumas localidades onde temos assistidos, porque esses problemas que as operadoras de saúde enfrentam são de outra ordem, não são necessariamente por causa do déficit e sim por pressões mercadológicas para cobrar mais dos planos de saúde e seus participantes.

É por isso que defendemos um acréscimo na proposta apresentada pelo patrocinador Banco do Brasil que pode aumentar em muito as perspectivas de sucesso nas medidas que têm por objetivo estabilizar o Plano de Associados e aperfeiçoar a gestão da entidade com ações estruturantes.

SUGESTÕES DA DIRETORIA DE SAÚDE E REDE DE ATENDIMENTO A SEREM CONSIDERADAS NOS ORÇAMENTOS DA CASSI EM 2017, 2018 E 2019, NO CASO DE APROVAÇÃO DOS NOVOS RECURSOS

Seguem abaixo as contribuições de nossa Diretoria de Saúde e Rede de Atendimento com os conceitos centrais em ampliar os cuidados dos participantes com Atenção Primária durante a vigência do acordo. Nossa contribuição completa e detalhada foi apresentada em forma de parecer nos espaços de governança da Cassi entre os dias 24 e 26 de outubro em nosso voto na apreciação do Memorando de Entendimento assinado entre Banco do Brasil e entidades representativas.

A Diretoria de Saúde e Rede de Atendimento defende as medidas estruturantes apresentadas como propostas de iniciativa estratégica no final de 2014, adicionadas de ação emergencial que possua efeito seguro de recomposição de valores no fluxo de caixa no curto prazo enquanto não surtem efeito outras implementações mais perenes e/ou sistêmicas.

Neste sentido, somos a favor dos pontos 1 e 2 da proposta conduzida em mesa de negociação entre entidades dos associados e BB. É essencial que se mantenham as premissas e princípios já garantidos e pactuados nos debates entre as partes: princípio da solidariedade, investimento no Modelo de Atenção Integral à Saúde e Estratégia Saúde da Família (ESF), garantia de atendimento para ativos, aposentados, pensionistas e dependentes, e corresponsabilidade entre BB e Associados.

No atual cenário de déficits mensais, entendemos que o aporte sinalizado terá efeito meramente emergencial, para a situação cotidiana de arrecadação e pagamento de contas. Não afetará a essência das grandes questões. É necessário, assim, garantir os projetos estruturantes após a avaliação da consultoria. Além disso, é preciso algum avanço imediato na reorganização do sistema de saúde Cassi.

O mercado de saúde apresenta agravamento das relações comerciais, dos custos e da resolutividade. E nossa população ampliou sua longevidade em velocidade acima da média mundial. Não é recomendável, portanto, aguardar 3 anos para retomar a reorganização do sistema e agir mais sobre a qualidade e a sustentabilidade que queremos.

Urge continuarmos a estruturação do modelo assistencial, expandindo equipes de saúde, repactuando a agenda de assistência com prestadores de serviço (referenciamento da rede), e aumentando o controle sobre ações como a de internação domiciliar. A proposta de quantitativos, locais e investimento está no parecer que apresentamos no voto. Por isso, é necessário ainda em 2017, 2018 e 2019:

1 – Ampliar de forma localizada o número de equipes de saúde da família em relação ao quantitativo atual, acrescentando, em alguns casos, outros profissionais, inclusive médicos de demanda espontânea, sobretudo onde já há sinais claros de busca populacional por tais serviços;

2 – Reforçar equipes de PAD (atenção domiciliar) nas Unidades em que, igualmente, já exista demanda acima da capacidade instalada;

3 – Estabelecer estruturas do conceito “Polos Regionais de Atenção à Saúde” (organização de equipes de Atenção Primária na rede credenciada, com contratação monitorada e gerida por pequeno grupo gestor da Cassi);

4 – Constituir redes referenciadas (profissionais e instituições de saúde que atuem em consonância com a ESF e com a constituição de uma história clínica integrada e única da população assistida – referência e contrarreferência) em volta das estruturas de atenção primária (Clinicassi e Polos Regionais de Atenção à Saúde).

Os cenários que estudamos consideraram ampliações em praças cujo efeito sobre a despesa assistencial tem expressão e onde há governabilidade para os incrementos ocorrerem no tempo desejado. Os valores estimados envolvidos não destoam dos referenciais e patamares daquilo que o BB se dispõe a apresentar como ressarcimentos para programas e ações/estruturas clínicas, tendo a mesma classificação no que se refere ao contorno de rubricas envolvidas. Nem desconsideram a preocupação do patrocinador quanto a manter seu aporte como ressarcimento. Além disso, aproximam o total desembolsado pelo BB da proporcionalidade reivindicada pelas entidades dos associados como adequada (60% empresa; 40% associados).

Os efeitos projetados e desenhados sobre a qualidade da assistência e o gerenciamento de seu custo serão medidos e administrados de maneira a viabilizar a absorção desse aporte adicional sobre a despesa básica (assistencial), tornando o impacto do desembolso menor.

Acreditamos que as ações focadas que sugerimos dará o rumo e a certeza que a Cassi e seus patrocinadores (Corpo Social e BB) necessitam para avançar nas ações estruturantes de sustentabilidade e evitar tornar o presente acordo em mera medida emergencial, condenada a ser negligenciada tão logo superada a atual fase aguda da crise.

Consideramos relevante termos como referência para o próximo período, com anuência do patrocinador Banco do Brasil, a possibilidade de acionamento do Artigo 25 do Estatuto Social da Cassi para o caso de algum descasamento entre receitas e despesas assistenciais do Plano de Associados durante a vigência do acordo, porque os associados já estarão dando a sua contribuição extraordinária até dezembro de 2019.

Fazemos a lembrança acima (ao Artigo 25) porque a proposta em análise não repõe as reservas livres do Plano de Associados, que são importantes para momentos de déficits ao longo do exercício administrativo da entidade. Sem esta reserva reposta, é necessário que a sugestão de o patrocinador fazer antecipações esteja de alguma forma garantida para não haver descontinuidade na normalidade administrativa da Cassi.

Defendemos que o acordo, se aprovado, preveja e garanta o acompanhamento das entidades representativas partícipes do processo negocial, em conjunto com os gestores da Cassi, eleitos pelos associados, a cada trimestre, para melhor divulgação dos trabalhos e transparência, além de garantir o foco quanto ao que foi aprovado.

Ainda, em função de nossos compromissos com os associados e suas entidades representativas e por acreditar na extensão da cobertura do Modelo de Atenção Integral e ESF, defendemos a abertura de estudos e negociações entre Banco e trabalhadores para avaliar possibilidades de inclusão dos bancários oriundos de bancos incorporados pelo BB à Cassi e ao seu modelo assistencial, bem como aos seus programas de saúde.

UNIDADE EM DEFESA DA CASSI É FUNDAMENTAL

Vamos encerrar este texto, contudo, fazendo um chamamento à Unidade. Não à “Unidade” vazia da concordância forçada, mas à Unidade de debatermos, divergirmos, concordarmos, nos reposicionarmos, reinventarmos e, assim, construirmos os caminhos coletivos para restabelecer o vigor a essa senhora de 72 anos, a nossa Cassi.

Fazemos esse chamado porque já vemos sinais em algumas pessoas ou grupos em achar que o momento de crise é propício para retomar velhas disputas, partindo para ataques territoriais ou mesmo pessoais, talvez esperando, na destruição, criar um novo espaço de liderança e como tal serem aclamados. Temos certeza de que, se não concentrarmos nossa energia agora na sustentabilidade de nossa Caixa de Assistência, pode não sobrar sequer território sobre o qual fazer disputas amanhã.

Fica o convite: usemos a energia e a engenhosidade em favor da sustentabilidade da Cassi e do coletivo, agora. Se tivermos êxito, haverá depois o tempo adequado para corridas eleitorais, disputas pessoais e outras aspirações mais nobres ou menos nobres que tanto movem alguns seres humanos.

 

* William Mendes é Diretor de Saúde e Rede de Atendimento da Cassi (mandato 2014/18)

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Na onda liberal em que o Direito do Trabalho navega, STF julga terceirização

Valdete Souto Severo *

 

Na pauta do STF das próximas semanas, mais um ataque em curso. O RE 958.252, que teve repercussão geral decretada no ARE 713.211 e é relatado pelo ministro Luiz Fux, será colocado em votação. O tema é a possibilidade de terceirizar inclusive o que a súmula 331 do TST denomina atividade-fim. Em resumo: qualquer atividade. A gravidade de uma decisão como essa será maior do que a aprovação do PLC 30, que versa sobre a mesma matéria, pois temos mais dificuldade em construir argumentos contra uma decisão do STF, do que contra texto de lei ou mesmo da Constituição vigente.

Na onda liberal em que o Direito do Trabalho navega, alvo de tsunamis e medusas, não impressiona que a escolha dos temas a serem submetidos à votação corresponda exatamente à agenda neoliberal de desmanche dos direitos sociais. Ou seja, ao pacote de medidas que constitui moeda de troca para o apoio que o governo golpista teve de parte importante do empresariado brasileiro, nele incluída a grande mídia, cujo papel foi decisivo, como bem sabemos.

É preciso admitir que o efeito será mais simbólico do que real, pois na realidade da vida a terceirização em atividades claramente essenciais ao empreendimento (motoristas em empresas de transporte, vendedores em lojas, etc) já vem sendo praticada com o beneplácito da Justiça do Trabalho. Ainda assim, trata-se de mais uma perda iminente, cujos efeitos deletérios serão sentidos pelas próximas gerações de trabalhadores. A terceirização é o mascaramento da relação que se dá entre trabalho e capital, com a introdução de um terceiro, atravessador, cuja única função é arregimentar força de trabalho, como se estivesse buscando mercadorias no Paraguai sem pagar o imposto de importação. Esse terceiro, via de regra empresa pequena, sem sede própria ou patrimônio, contrata os trabalhadores cuja força de trabalho será revertida em favor do tomador.

O tomador do trabalho, portanto aquele que realmente emprega a força de trabalho, pretenderá com isso economizar, ao eximir-se do pagamento das verbas salariais devidas ao ser humano que explora. Essa distância (apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua força de trabalho, provoca não apenas redução real da remuneração (porque afinal de contas todos esses “atravessadores” precisam lucrar com o negócio de repasse de força de trabalho), mas a invisibilidade, o descomprometimento, a fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à organização sindical.

O Direito do Trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, por exemplo, o capital consegue aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, promove a concorrência interna e, com isso, elimina a possibilidade de resistência coletiva organizada. Questões salariais, de condições do ambiente de trabalho, de assédio moral coletivo, não serão mais identificadas (isso já ocorre em ambientes invadidos pela terceirização) como questões comuns. Cada grupo travará a sua luta. Esse efeito da terceirização nos revela outra falácia. Se houvesse mesmo interesse em fortalecer a vontade coletiva, manifestada através do sindicato, a terceirização estaria sendo duramente combatida.

Com a decomposição da classe trabalhadora e o desmanche da identidade social que a terceirização opera, falar de “negociado sobre o legislado” só fará sentido se compreendermos que o objetivo almejado é a completa destruição dos parâmetros jurídicos da exploração do trabalho pelo capital. Não há preocupação alguma em respeitar a vontade coletiva dos trabalhadores, que nada tem de autônoma. O que há é um projeto que se desvela cada vez com mais clareza e crueldade, de desmanche das parcas conquistas sociais obtidas nas duas últimas décadas.

No âmbito da seguridade social, a permissão para terceirizar implica redução real do salário de milhões de brasileiros e a precariedade nos vínculos (contratos mais curtos), o que aumenta a rotatividade e, portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro desemprego. Se existisse realmente interesse em reduzir gastos públicos, como se quer fazer crer com a defesa da nefasta PEC 241, o incentivo à terceirização seria algo impensável. Há dados revelando que os acidentes e doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência entre os terceirizados.

Portanto, a autorização legal para ampliar as hipóteses de terceirização promoverá, também, o aumento do número de acidentes e doenças profissionais, com consequências sociais e previdenciárias graves. Essas consequências, especialmente a redução da remuneração, trazem consigo efeitos diretos sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da existência de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados.

Qualquer redução de direitos sociais implica, em última análise, piora das condições sociais de vida de toda a população, com reflexos inclusive na vida dos “incluídos”, que andam por aí de carro blindado e só passeiam em shoppings. Esse retrocesso certamente terá custos históricos que hoje sequer conseguimos projetar integralmente.

Estamos caminhando para a barbárie e apesar de termos ministros aparentemente comprometidos com o Direito do Trabalho, porque com ele construíram sua identidade, há um silêncio ensurdecedor no STF, como se existisse um pacto de destruição do Direito do Trabalho. Há aqueles que o capitaneiam, e não hesitam em reconhecer isso em todas as oportunidades de fala, e há os que nada dizem, ou dizem e fazem muito pouco.

A liminar concedida na decisão que será posta em pauta já dá a tônica do que vem por aí. Como na música do Legião Urbana, “beberam meu sangue e não me deixam viver, tem o meu destino pronto e não me deixam escolher; vem falar em liberdade pra depois me prender; pedem identidade pra depois me bater. Tiram todas minhas armas, como posso me defender?” A verdade é que ainda podemos nos defender da barbárie, mas só conseguiremos fazê-lo com movimento, mobilização e luta.

 

 

* Valdete Souto Severo é Juíza do Trabalho na 4ª Região, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidad de la Republica do Uruguai; Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Professora, Coordenadora da Especialização e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS.