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PLS 555 aponta o caminho do retrocesso

Vagner Freitas*

 

Ao longo da história, as empresas públicas protagonizaram transformações que marcaram o dia a dia do Brasil. Difícil encontrar um cidadão que não tenha tido alguma relação direta com essas instituições, seja por causa do FGTS, da casa própria, da agricultura familiar e patronal, do gás de cozinha, da energia elétrica, dos combustíveis etc.

Nos últimos anos elas foram determinantes para que os avanços econômicos e sociais andassem de mãos dadas, levando a que as ações das empresas públicas estivessem voltadas para atender às demandas sociais e de infraestrutura do país. O que seria do Bolsa Família e do Minha Casa Minha Vida sem a Caixa Econômica Federal? Sem a Eletrobrás, não haveria Luz para Todos. O que seria das micro e pequenas empresas sem os empréstimos facilitados do BNDES? Sem os Correios e a Petrobrás, cartas, encomendas e combustíveis jamais chegariam aos rincões deste país. E a agricultura patronal e familiar não teria a projeção que tem hoje para a cadeia produtiva, se não fosse as pesquisas da Embrapa e o peso dado pelo Banco do Brasil para o segmento.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) 555/2015, também conhecido como ´Estatuto das Estatais´ pode ser votado nesta terça-feira, 16 de fevereiro. Com DNA tucano – é um substitutivo do PL 167, do senador Tasso Jereissati, e uma referência ao PLS 343, do senador Aécio Neves, ambos do PSDB -, ele representa um grande risco às empresas públicas brasileiras, e várias ações para impedir sua aprovação vêm sendo realizadas pela CUT e outras centrais sindicais desde o segundo semestre do ano passado.

A mobilização, que rapidamente ganhou alcance nacional, obteve por duas vezes o adiamento da votação no Senado; reuniu estudiosos da área econômica e jurídica para elaboração de um substitutivo e resultou na criação de um Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas.

Tamanha organização, envolvendo representantes de trabalhadores de diversas categorias, se fez necessária para tentar brecar esse PLS especialmente no que ele traz de mais assustador para a sociedade: a possibilidade de uma nova onda de privatizações, quando emprego e demais direitos trabalhistas são ignorados em nome da lucratividade. Uma condição que a CUT não pode aceitar.

Mas, não bastasse essa questão fundamental, evidente no texto do projeto quando estabelece que as estatais (em todas as esferas) se tornariam sociedades anônimas, há ainda outros mecanismos de intervenção que mudariam substancialmente o papel, autonomia e gestão das empresas públicas. Um deles, por exemplo, restringe a participação de trabalhadores nos conselhos de administração, o que inviabiliza totalmente a representatividade dos empregados nestas instâncias. Pesa ainda contra o projeto o fato de estabelecer um estatuto padrão para todas as empresas públicas. Ele não leva em consideração que as gestões, as estruturas e as missões dessas estatais são totalmente distintas. Um banco, como a CEF tem uma estrutura, uma gestão e uma missão completamente diferente de uma empresa como a Embrapa ou os Correios.

Para a CUT, defender a participação dos trabalhadores em todos os fóruns é defender a democracia. E defender a democracia é garantir que a sociedade não seja lesada em nome da ganância, em nome do ´mercado´, ou ainda, nesse caso, em nome de uma suposta ´transparência´ na gestão das estatais. É fácil perceber os interesses que estão por trás desse PLS quando se sabe que, atualmente, de acordo com dados do Ministério do Planejamento, o Brasil possui 140 estatais somente no âmbito federal, com cerca de 540 mil empregados. O que significa nada menos que um patrimônio líquido superior a 600 milhões de reais, com ativos acima dos quatro trilhões.

Entre estas estatais estão a Caixa e o BNDES, totalmente gerenciados pelo Estado; ou seja, 100% públicas, e outras de capital aberto, como a Telebrás, Petrobras etc. Atuam em setores estratégicos para o País e, mais ainda, desempenham uma função social que contempla o desenvolvimento de seu povo, o que é ignorado quando a administração de uma empresa se guia apenas pelo avanço nos lucros.

Infelizmente, o PLS 555 não é o único projeto que aponta para o caminho do retrocesso no atual Congresso, fortemente constituído por representantes de setores conservadores. Mas nós também somos fortes – somos fortes, somos CUT! -, e vamos juntos ampliar ainda mais essa mobilização, impedindo que uma aprovação ocorra sem o debate e as mudanças necessárias. Nós também queremos estatais eficientes e de gestão transparente, mas que atuem em defesa do patrimônio brasileiro e de seus trabalhadores, estes sim os verdadeiros geradores da riqueza do Brasil.

 

* Vagner Freitas é bancário e presidente nacional da CUT

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PMDB: hay gobierno, soy a favor!

Frei Betto*

 

Ei-lo: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro à frente do poder legislativo brasileiro: o Senado (Renan Calheiros) e a Câmara dos Deputados (Eduardo Cunha). Os dois, investigados pela  Lava-Jato! Nem na Roma antiga, republicana, tal fenômeno parecia possível. Em nome da divisão de poderes, as famílias nobres cultuavam a diversidade como antídoto ao absolutismo. Aqui não; a cobra fuma e engole a fumaça.

O PMDB pulou fora do barco do governo e se joga nos braços da oposição. De fato, é um partido repartido em tendências inclusive antagônicas. Nele há de tudo, desde o testemunho ético de um Pedro Simon às recorrentes denúncias de corrupção que historicamente pesam sobre alguns de seus líderes. Ele pratica, mais que a democracia, a demoarquia, originária do verbo grego archein, que significa ser o primeiro, estar à frente, no sentido de comandar processos.

Quem diria que o PT seria politicamente atropelado pelo trator do partido dirigido por aqueles que aprenderam a conjugar assim o verbo poder: eu posso, tu podes, ele pode; nós podemos, vós não podeis e eles não podem, a menos que rezem pela nossa cartilha e favoreçam nossos interesses corporativos. É a corporocracia.

Ora, pra que debater a alternativa parlamentarista? Ou quem sabe estamos, sem nos dar conta, em plena monarquia! A família peemedebista se perpetua nas instâncias do poder com direito a conceder a correligionários e aliados cargos e prebendas.

Haja o que houver, estamos em mãos do mais despudorado fisiologismo, cujos discursos sobrevoam eloquentemente as práticas do clientelismo e do compadrio. Se o mundo gira e a Lusitana roda, os governos se sucedem e o PMDB impera. Hay gobierno, soy a favor, grita a ala dos peemedebistas acostumada a mamar nas tetas da máquina pública…

E o que tanto aspira este partido que jamais soçobra nas turvas águas da conjuntura? Como é possível contracenar com a ditadura e celebrar a democracia? Ora, basta dar a presidência do antigo partido de suposta oposição à ditadura, o MDB, ao presidente da Arena, José Sarney, partido de defesa da ditadura…

O PMDB persegue uma só meta, um só objetivo, tem uma só ambição: o poder. Se muitos sucumbem às tentações do poder, do dinheiro e do sexo, a ala fisiologista do PMDB, se vivesse no Paraíso, não teria caído no conto da maçã, e sim tentado convencer Javé de que o mundo seria melhor tendo-a como braço direito.

Coitado do doutor Ulysses! Conta Homero, na Odisseia, que Ulisses encontrou, na Ilha das Sereias, curiosas criaturas com cabeças e vozes de mulheres, mas com corpos de pássaros que, com doces canções, atraíam marinheiros ao encontro das rochas. Quando o barco se aproximou, uma calmaria se abateu sobre o mar, e a tripulação utilizou os remos. De acordo com as instruções de Circe, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera, enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse ouvir a canção e passar a salvo pelo perigo. “Aproxime-se Ulisses!”, cantavam as sereias. Ulisses resistiu, mas quantos, a bordo do transgoverno chamado PMDB, são capazes de tampar os ouvidos ao canto das sereias?

Narra ainda Homero que Penélope, fiel esposa de Ulisses, resistiu a todos os pretendentes, até que surgisse um homem capaz de atirar com o arco que Ulisses tendeu. Nenhum deles o conseguiu. Até o dia em que um mendigo pediu para atirar e, na mesma hora, Penélope reconheceu nele seu amado Ulisses.

A democracia brasileira espera, como Penélope, o dia em que possa reconhecer sua plenitude na inclusão social daqueles que, hoje, se nos apresentam como maltrapilhos e oprimidos.

 

 

* Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.orgTwitter: @freibetto

 


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Desafios de futuro à revolução cubana

Frei Betto*

 

O papa Francisco, ao comemorar 78 anos, a 17 de dezembro de 2014, deu um inestimável presente ao Continente americano: o início do fim do bloqueio dos EUA à Cuba e o reatamento das relações diplomáticas entre os dois países.

Este foi o tema que Francisco priorizou com Obama no encontro que mantiveram, em Roma, em março daquele ano. Um ano antes, ao assumir o pontificado, Francisco se inteirou da questão ao receber Diaz-Canel, vice-presidente de Cuba.

Obama admitiu na TV que “o isolamento não funcionou.” De fato, o bloqueio imposto à Cuba, ao arrepio de todas as leis internacionais, não conseguiu nem mesmo fragilizar a autodeterminação cubana após a queda do Muro de Berlim.

Fidel, que completará 90 anos em agosto deste ano, sobrevive a oito presidentes dos EUA, dos quais enterrou quatro. E a mais de 20 diretores da CIA.

Os EUA são lerdos para admitir que o mundo não é fruto de seus caprichos. Por isso, demorou 16 anos para reconhecer a União Soviética; 20 para o Vietnã; e 30 para a República Popular da China. E foram precisos 53 anos para aceitar que Cuba tem direito à autodeterminação, como já sinalizara a Assembleia Geral da ONU.

De fato, EUA e Cuba jamais romperam o diálogo. Em Washington funcionou, ao longo de cinco décadas, a legação cubana, assim como em Havana o prédio da legação usamericana ergue-se majestoso no Malecón.

A notícia dessa reaproximação marca o fim definitivo da Guerra Fria em nosso Continente. E Cuba sai no lucro, pois oferece uma infraestrutura turística sadia, despoluída e isenta de violência a 1 milhão de canadenses que, no inverno, com três horas de voo, trocam 20 graus negativos por 30 positivos do mar do Caribe.

Com a abertura do mercado cubano a investimentos estrangeiros, os EUA, que raciocinam em cifrões, não querem ficar atrás da União Europeia, do Canadá, do México, do Brasil e da Colômbia, que selam importantes parcerias com a Ilha revolucionária. “Em vez de isolar Cuba, estamos isolando somente o nosso país, com políticas ultrapassadas”, disseram em carta a Obama os parlamentares estadunidenses Patrick Leahy (democrata) e Jeff Flake (republicano) ao retornarem de Havana.

Em troca de Alan Gross, agente da CIA detido em Cuba por ações terroristas, Obama libertou três dos cinco cubanos presos nos EUA, desde setembro de 1998, acusados de terrorismo (dois já tinham sido soltos).

Na verdade, os cinco cubanos tratavam de evitar, na Flórida, iniciativas terroristas de grupos anticastristas. E foram usados como bucha de canhão pelo FBI e por grupos de direita para impedir, na época, a reaproximação entre EUA e Cuba.

O tribunal de Atlanta havia admitido, por unanimidade, que as sentenças aplicadas a três dos cinco cubanos (Hernández, Labañino e Guerrero, libertados por último) careciam de fundamento jurídico: não houve transmissão de informação militar secreta, nem puseram em risco a segurança dos EUA.

Capital simbólico

Cuba vive, atualmente, um momento histórico de grandes transformações. Sua lógica revolucionária de desenvolvimento, centrada nas necessidades e nos direitos da maioria da população, deixa de ser estatizante e se abre às parcerias público-privadas. A construção do porto de Mariel, o mais importante de todo o Caribe, descortina novas possibilidades ao desenvolvimento cubano.

O setor de turismo, incrementado pela excelência dos serviços – como na área médica, e o alto nível educacional da mão de obra e a proteção ambiental -, se amplia como promissora estratégia de captação de divisas. O governo de Cuba se empenha em equacionar o problema da duplicidade de moedas – o peso cubano, utilizado pela população local, e o CUC, moeda conversível, obrigatória para turistas e acessível ao cubano em condições de pagar 24 pesos por 1 CUC. Enfim, uma série de novas medidas é estudada e testada para alavancar o desenvolvimento do país.

O que há de original na lógica de desenvolvimento de Cuba é justamente seu capital simbólico fundado em valores espirituais, como o senso de liberdade e independência, de cooperação e solidariedade, que marca a história do país, da luta dos escravos à implantação do socialismo. Muitos, no exterior, ignoram o quanto essa ética revolucionaria é arraigada no povo cubano e apostam que, em breve, Cuba será uma miniChina, politicamente socialista e economicamente capitalista.

Ora, esse risco existiria se Cuba abandonasse o que possui de mais precioso: seu capital simbólico. O país não tem muitos bens materiais, e o pouco que possui tem sido repartido para assegurar a cada habitante direito à dignidade como ser humano.

Porém, poucas nações do mundo são ricas, como Cuba, em capital simbólico, encarnado em figuras como Felix Varela, José Martí, Ernesto Che Guevara, Raúl e Fidel Castro.

Esse capital simbólico não resulta apenas da Revolução vitoriosa em 1959. A Revolução o potencializou. É consequência de séculos de resistência do povo cubano aos dominadores espanhóis e estadunidenses. Resulta desse profundo senso de independência e soberania que caracteriza a cubaneidade e marca a gloriosa história do país.

Ora, se a Revolução Cubana tem o propósito de perdurar como “sol do mundo moral”, na feliz expressão de Luz y Caballero, que intitula a clássica obra de Cíntio Vitier sobre a eticidade cubana, e se o desafio é aprimorar o socialismo, a questão ética se torna central nos processos de educação ideológica. Cada cubano deve se perguntar por que Martí, que viveu quase quinze anos nos EUA, não vendeu a sua alma ao imperialismo ascendente. Por que Fidel e Raúl, filhos de latifundiário, educados nos melhores colégios da alta burguesia cubana, não venderam suas almas ao inimigo? Por que Che Guevara, médico formado na Argentina, revolucionário consagrado em Cuba, ministro de Estado e presidente do Banco Central, ousou franciscanamente abandonar todas as honras políticas e facilidades inerentes ao exercício de suas funções no poder para meter-se anonimamente nas selvas do Congo e da Bolívia, onde a morte o encontrou em estado de completa penúria?

O capitalismo, com a sua poderosa maquina publicitária, quer que a humanidade tenha como sentido o ter, e não o ser. Quer formar consumistas e não cidadãos e cidadãs. Quer uma nação de indivíduos, e não uma comunidade nacional de companheiros e companheiras.

O socialismo ruma na direção contrária. Nele o pessoal e o social são faces da mesma moeda. Nele cada ser humano, independentemente de sua saúde, ocupação, cor da pele, condição social, é dotado de ontológica dignidade e, como tal, tem direito à felicidade.

Esta a ética a ser cultivada para que Cuba, no futuro, não venha a ser uma nação esquizofrênica, com política socialista e economia capitalista. O socialismo de uma nação não se mede pelos discursos de seus governantes. Nem pela ideologia do partido no poder. O socialismo de uma nação se mede pela amplitude democrática de seu sistema político, efetivamente emanado do povo e, sobretudo, de sua economia, de modo que todos, cidadãos e cidadãs, tenham iguais direitos de compartilhar os frutos da natureza e do trabalho humano. Por isso, considero o socialismo o nome político do amor.

Mudar os objetivos

A reaproximação de Cuba e EUA é vista com cautela pelos cubanos. Nas visitas que fiz à ilha nos últimos 15 meses, cubanos admitiram que a reaproximação é inevitável. Porém, “há um longo caminho a ser percorrido”, disse-me Fidel, que continua lúcido e atento ao noticiário. E muito interessado em tudo que se passa no Brasil.

Não basta a nova retórica de Obama. “É preciso que os EUA excluam Cuba da lista dos países terroristas”, frisou Fidel (o que ocorreu após o encontro de Raúl e Obama no Panamá, em abril de 2015) – “e suspendam o bloqueio.” Na reunião da CELAC, na Costa Rica, em janeiro de 2015, Raúl Castro acrescentou: “E devolvam a base naval de Guantánamo.”

Cuba recebe, hoje, 3 milhões de turistas por ano. (Para nossa vergonha, o Brasil, com esse imenso potencial turístico, recebe apenas 6 milhões). A diferença com o nosso país é que Cuba tem política de Estado de implementação turística, e promove turismos ecológicos, científicos e culturais. Já o Brasil, além da ausência de política para o setor, explora apenas o Carnaval, praias e mulatas…

Com a reaproximação com os EUA, prevê-se que viajarão a Cuba, a cada ano, 3 milhões de estadunidenses. Eis o temor dos cubanos. O país, por enquanto, não dispõe de infraestrutura adequada para absorver tantos visitantes.

Segundo os cubanos, os canadenses são respeitosos, discretos e de fácil entrosamento com a população local. Já os estadunidenses carregam três acentuados defeitos: a arrogância (acham-se os donos do mundo); o consumismo (comprar, desde carros antigos que trafegam pelas ruas de Havana, até mulheres…); e a mania de viajar sem sair dos EUA… (o que explica a existência, em cada ponto turístico do planeta, de McDonald’s e redes hoteleiras ianques, como Sheraton, Intercontinental etc).

Ainda assim, os dólares são bem-vindos a uma economia deficitária, embora haja consciência de que o reatamento significa o choque do tsunami consumista com a austeridade revolucionária.

Tudo indica que, inicialmente, o fluxo maior de viajantes dos EUA rumo a Cuba será motivado pelo “turismo médico”. Para o cidadão comum, tratamentos de saúde nos EUA são caros e precários. Cuba, além de excelência na área, reconhecida internacionalmente, possui expertise em ortopedia. E, atualmente, desenvolve vacinas eficientes contra vários tipos de câncer.

Agora, resta à Casa Branca passar do discurso à prática. Como me enfatizou Fidel, “eles são nossos inimigos e, portanto, precisam mudar não apenas os métodos, mas, sobretudo, os objetivos em relação a Cuba.”

 

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens aos países socialistas” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org     Twitter: @freibetto

 


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Direitos Humanos e loteria biológica

Frei Betto*

A questão dos direitos humanos se resume: aceito ou não que, ontologicamente, cada pessoa é dotada de radical dignidade? Como cristão, digo sacralidade.

Imagine um mendigo na esquina da padaria. O Estado ignora aquele homem deitado no chão. Uma e outra pessoas passam e deixam-lhe um dinheirinho. Sobrevive dessa esmola. O Estado não lhe estende o braço administrativo.

Porém, se um dia ele não ganhou nenhuma esmola e, à noite, sentiu muita fome e não resistiu à tentação daquela vitrine maravilhosa, com pães, tortas e doces, e atirou uma pedra no vidro, imediatamente o outro braço do Estado, o repressivo, aparece.

Ao falar de política e direitos humanos, há que perguntar: isso que os nossos políticos propõem é para aumentar o lucro de uma minoria ou defender os direitos de todos?  É para favorecer um pequeno segmento de produtores e especuladores ou para que toda a nação seja contemplada?

Não sejamos ingênuos. Direitos humanos e sistema capitalista são incompatíveis, porque o próprio sistema proclama que o direito prioritário é acumulação privada da riqueza. Por isso é chamado de sistema do capital.

O maior valor do sistema, a competitividade, é contrário a este que, na família, na escola, na Igreja, ensinamos – a solidariedade. O sistema faz isso ao influir na mídia e no material didático das escolas. Nos livros didáticos, os revoltosos mineiros são chamados de inconfidentes. E o movimento, de Inconfidência Mineira. Receba o telefonema de um amigo que avisa: olha, fulano disse que não quer vê-lo nem pintado, porque você é muito inconfidente; contou-lhe um segredo e você saiu espalhando.

Inconfidente é o rótulo pejorativo, ofensivo, que a Coroa portuguesa pôs nos revoltosos, nos conjurados mineiros, para desmoralizá-los. Se fosse hoje, a Inconfidência Mineira seria chamada de Deduragem Mineira…

É diferente de delação premiada, que é o mínimo que deve acontecer nesse país. Lamento que tenha esse nome, mas é justa e necessária. Alguém precisa denunciar. Ainda mais que seja bandido denunciando bandido. É omissão cúmplice saber de um caso de corrupção e ficar calado.

Os grandes fatores ideológicos que destilam, hoje, o pior dos venenos à prática dos direitos humanos, são o preconceito e a discriminação. Não se pode ter preconceito e nem discriminar ninguém.  Volto a dizer: todos somos filhos da loteria biológica. Eu poderia ter nascido na Síria, igual al-Assad; na África, como os etíopes que morrem de fome; na Guiné, contaminado pelo vírus ebola. E você também. Não dá para achar que somos superiores, melhores. Somos um sopro divino que dura poucos segundos nessa breve vida que temos. E tudo tem começo, meio e fim. Todos haveremos de morrer. E ficamos alimentando preconceito, discriminação, ressentimento…

Atribui-se a Shakespeare esta frase genial: o ódio é um veneno que você toma esperando que o outro morra.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Felicidade foi-se embora?”, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella (Vozes).  www.freibetto.org     twitter:@freibetto.

 

 


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Do Estado de Direito ao da direita

Frei Betto*

 

O Brasil passa por intensa turbulência. Assemelha-se a uma nau sem rumo. A teimosia de Eduardo Cunha, que não encontra seu Tirésias capaz de lhe indicar o caminho do bom senso, paralisa o Congresso. Insiste em permanecer no cargo, mesmo colocado no banco dos réus por dupla instância, o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e o Supremo Tribunal Federal (por unanimidade dos juízes).

O Executivo assiste ao esgarçamento de sua base aliada e ao fracasso de sua política econômica. Dilma, cercada de pretendentes ao cargo, lembra Penélope à espera da volta de Ulisses em 2018…

O Judiciário ocupa o proscênio da República. O juiz Sérgio Moro abusa de sua autoridade ao coagir depoentes, e ministros do STF dão entrevistas antecipando suas posturas em prováveis futuras decisões. Sou de opinião de que ministro do STF deveria, fora da corte, fazer voto de silêncio.

Os ânimos tendem a se acirrar. A oposição quer a saída de Dilma. Para colocar quem? Michel Temer? Eduardo Cunha, o terceiro na linha sucessória, caso a chapa Dilma-Temer sofra impeachment?

Temo que o Brasil passe do Estado de Direito para o Estado da Direita. Como ocorreu na Alemanha de Hitler, na Itália de Berlusconi, e ameaça se repetir se Trump for eleito nos EUA. Neste país, os empregos na indústria caíram de 19,3 milhões em 1979 para 12,3 milhões em 2015, enquanto a população cresceu de 225 milhões para 321 milhões. Busca-se, agora, um “messias”.

O PT teve muitos acertos, mas também cometeu muitos erros em 12 anos de governo. Não promoveu nenhum reforma estrutural, nem politizou a nação. E suas promíscuas alianças políticas o levaram a enredar-se no mensalão e no petrolão. Teima, no entanto, em não fazer autocrítica, como lamentou Olívio Dutra em recente entrevista a Roberto D’Ávila, e se recusa a apresentar um projeto consistente para o Brasil.

Quando um casal perde a perspectiva de um projeto comum, a dois, a relação azeda. E se inicia a troca de cobranças e acusações. O racional cede lugar ao emocional.

O mesmo acontece quando uma nação carece de visão histórica e acredita que o futuro melhor depende de salvadores da pátria, e não de projetos políticos. Já vimos este “filme” no Brasil, intitulado “O caçador de marajás”.

Se Lula, como jararaca acuada, decidiu dar o bote e antecipar sua campanha eleitoral de 2018, basta se dar conta de que é o fundador e presidente de honra do partido que governa o Brasil.

Dilma foi eleita para governar segundo o programa do PT. Antes que o Brasil afunde, convém tirar esse programa da gaveta (aquele que se propagou na campanha eleitoral de 2014 e levou Dilma à vitória), evitar o estelionato eleitoral e a presidente mostrar a que veio nesses próximos três anos que lhe cabe governar o Brasil.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros.
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A hora é de união

Nilton Damião Esperança*

 

O país vive um momento delicado em que forças políticas antagônicas levaram a rivalidade a patamares que ameaçam nossa democracia. Enquanto isso, a economia sofre as consequências de uma guerra que envolve os três poderes da República. Nesta disputa de poder, quem sai perdendo é a população.

É preciso que nos façamos algumas perguntas: o país precisa mesmo de mais de 30 partidos políticos? Todos têm ideologias que busquem o benefício da população? Nossos representantes no Congresso Nacional estão preocupados em transformar esta crise em mais uma luta de todos para conseguirmos revertê-la?

Ao invés de convocar manifestações a favor do impeachment ou comemorar prisão ou denúncias de A ou B, devemos estar atentos e cobrar dos políticos que elegemos as pautas que estão em tramitação na Câmara e no Senado. Há projetos que tratam da reforma da previdência, da terceirização, da entrega do pré-sal e da privatização das estatais, por exemplo. Todos eles são nocivos aos trabalhadores e ao país. Não adianta protestar nas redes sociais e nem mesmo nas ruas se continuarmos num clima de Fla x Flu ideológico. Temos que levar ideias, pressionar os políticos, expressar a vontade do povo e deixar claro que não vamos abrir mão do que é nosso.

Não podemos deixar nosso país se transformar num campo de guerra e desrespeito. Não devemos assumir o papel de juízes ou de donos da verdade. Temos um Executivo, um Legislativo e um Judiciário que devem exercer democraticamente seus papéis republicanos, respeitando incondicionalmente as leis. É hora de defender com muita garra a democracia e a soberania do nosso país. Siglas partidárias ou vaidades pessoais não podem impedir o esforço para o avanço do Brasil.

Nosso país precisa de todos nós. Agressões físicas e verbais, rivalidades e violência não ajudam a ninguém. Precisamos agir com responsabilidade, serenidade e respeito. Só assim poderemos superar a crise política e econômica que agora vivemos. Já passamos por coisa pior e certamente somos capazes de superar este momento difícil.

 

 

* Nilton Damião Esperança é presidente da Fetraf-RJ/ES e do Sindicato dos Bancários de Três Rios e Região

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Ideologia de gênero

Frei Betto*

 

“Há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”, afirmou Shakespeare. Na versão tupiniquim do Barão de Itararé, “há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira.”

Isso se aplica à sexualidade pós-moderna. Embora sejamos todos, por nascimento, do sexo masculino e feminino (ou hermafrodita), há mais gêneros sexuais do que hetero e homossexualidade.

A homossexualidade é, hoje, considerada, pela maioria dos países do Ocidente e pela Igreja Católica, uma tendência natural do ser humano. Foi banida da lista de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde (1993) e, no Brasil, do Conselho Federal de Psicologia. Embora alguns evangélicos insistam em qualificá-la de “demoníaca” e prescrevam a “cura gay”…

Há pouco trabalhei o tema com educadores da Rede Azul, que congrega, em São Paulo, uma dezena de escolas. Há quem enumere mais de cinquenta gêneros sexuais, além de transexuais, bissexuais, HSH, etc.

Quando se fala em ideologia de gênero passa-se a impressão de que o conceito deriva de uma cabeça pornográfica, sem refletir a realidade. Certos pais e professores fazem de conta que acreditam na heterossexualidade de seus jovens, deixando-os à deriva em práticas sexuais outrora encobertas pelo moralismo, o tabu e o preconceito.

Família e escola costumam silenciar quando se trata de temas radicais (de raiz) da vida, como sexo, dor, morte, fracasso, ruptura conjugal, falência etc. Não raramente dão educação sexual como meras aulas de higiene corporal para se evitar doenças sexualmente transmissíveis. O fundamental não é abordado: a constituição do amor como vínculo afetivo e efetivo.

Os nascidos no século XXI se iniciam na vida sexual em idade mais precoce do que as gerações do século XX. Meninas transam com meninas, meninos com meninos, sem que isso expresse necessariamente uma identidade sexual. “Ficar”, “selinho”, rotatividade de parceiros, tendem a banalizar o sexo, praticado como se fosse um esporte prazeroso, sem o peso da culpa ou envolvimento emocional para se impor como projeto de vida a dois.

Vários fatores contribuem para essa revolução sexual: a indiferença religiosa ou a espiritualidade desprovida da noção de pecado; a erotização da cultura hedonista e consumista do neoliberalismo (vide peças publicitárias e programas como Big Brother e Pânico na TV); o fim da censura (qualquer adolescente pode acessar todo tipo de pornografia na internet); e a velha moral burguesa que privatiza os bons costumes e publiciza a degradação da mulher (o mesmo empresário que proíbe a filha de usar roupas insinuantes, patrocina o programa ou o anúncio no qual a mulher é reduzida a objeto de deleite machista).

O que fazer? Liberar geral, com todos os riscos de AIDS e gravidez indesejada? Resgatar o moralismo, reaquecer o fogo do inferno e estimular a homofobia e o genocídio de LBGTodos?

Há que ir ao cerne da questão: formar a subjetividade. O jovem que se droga clama: “Não suporto essa realidade. Quero ser amado!” A jovem que transa com diferentes parceiros grita: “Quero ser feliz!” Porém, ninguém ensinou a eles que a felicidade não resulta da soma de prazeres. É um estado de espírito do qual se desfruta mesmo em situações adversas. E requer algo que os jovens buscam intensamente sem encontrar quem lhes ofereça: espiritualidade, como abertura à dupla relação: amorosa (uma pessoa, uma causa, um projeto de vida) e à transcendência. Não confundir com religião. Esta é a institucionalização da espiritualidade, como a família é do amor.

Pretender evitar a promiscuidade sexual dos jovens sem educação da subjetividade (e há excelentes ferramentas, como filmes, romances e poesias) é esperar que alguém seja honesto sem estar impregnado de valores éticos.

 

* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros
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Ciência e Humanismo

Frei Betto*

 

Em agosto de 1945, duas cidades japonesas foram varridas do mapa: Hiroshima e Nagasaki. Mais de 200 mil pessoas perderam a vida atingidas pelas bombas atômicas lançadas por aviões estadunidenses. Foram os mais graves atentados terroristas ocorridos em toda a história da humanidade.

Por detrás das bombas estavam homens graduados nas melhores universidades do mundo. Robert Oppenheimer, que chefiou o Projeto Manhattan, do qual resultaram os artefatos mortíferos, era físico teórico formado por Harvard, em 1925. Após a catástrofe japonesa, foi acometido de crise de consciência. Costumava repetir uma frase do Bhagavad-Gita: “Eu me tornei a morte, destruidora de mundos.” Mais tarde, posicionou-se a favor de maior controle na proliferação de armas nucleares, o que lhe custou a acusação de ser espião soviético.

Edward Teller, colega de Oppenheimer no Projeto Manhattan, nascido na Hungria, graduou-se em engenharia química na Alemanha. Canalizou sua inteligência para inventar a bomba de hidrogênio, 750 vezes mais potente que a de Hiroshima. Foi ele quem acusou Oppenheimer de espião soviético. Na década de 1980, destacou-se como mentor do Programa “Guerra nas estrelas”, patrocinado pelo presidente Reagan. Sua insanidade científica inspirou o filme Dr. Fantástico, de 1964, dirigido por Stanley Kubrick.

Se Oppenheimer tivesse recebido, como Einstein, uma formação humanista baseada em valores morais, teria chefiado o Projeto Manhattan? Se Teller tivesse recebido uma formação humanista fundada na ética, teria criado a bomba de hidrogênio? E os presidentes Roosevelt e Truman teriam autorizado o Projeto Manhattan e o genocídio nuclear em Hiroshima e Nagasaki?

Não basta ter uma formação humanista. Heidegger teve e, no entanto, apoiou o nazismo. Werner Heisenberg também, e colaborou com o projeto atômico dos nazistas. Uma verdadeira formação humanista supõe encarnar valores como solidariedade, cooperação, luta por justiça, defesa da dignidade de todos os seres humanos e preservação ambiental.

Dentro de uma universidade, toda a diversidade de disciplinas, da filosofia à medicina, segue o mesmo objetivo de constituir uma instituição voltada a formar mão de obra qualificada para o mercado, e raramente profissionais em condições de responder às demandas da população.

A universidade precisa sempre se submeter à autocrítica. Perguntar-se se é uma ilha do saber indiferente às reais necessidades do país ou se constitui uma usina capaz de dotar a nação de ferramentas teóricas e práticas para solucionar os problemas que a afetam.

Quando Napoleão entrou em Berlim, em 1806, os prussianos tiveram que abandonar suas posturas inflexíveis e permitir que nos países de língua alemã as universidades se libertassem da tutela da teologia. Os pioneiros dessa emancipação foram Johann Fichte, Christian Wolff e Immanuel Kant. E graças à autonomia da razão, as universidades alemãs nos deram Marx, Engels, Planck, Weber, Freud e Einstein. Geologia, física e química passaram a merecer a mesma importância de filosofia, história e sociologia.

Os EUA se espelharam no modelo alemão, pois necessitavam de profissionais qualificados para expandir seu parque industrial. Estabeleceu-se estreito vínculo entre empresas e universidades.

A universidade ianque se transformou em uma usina elitista de pragmatismo e liberalismo. O que lhe interessa, ainda hoje, é desenvolver a ciência e a tecnologia. E o princípio estratégico pedagógico que rege esse pragmatismo é óbvio: fortalecer o mercado e a apropriação privada da riqueza.

Em 1908, Harvard inaugurou sua Escola Superior de Empresas de Graduados. Ou seja, formar melhor os homens de negócios. Os alunos eram enviados para estagiar nas empresas. Essa pedagogia propiciou às empresas aprimorar a qualidade de seus quadros de profissionais.

O caráter desse projeto pedagógico das universidades dos Estados Unidos se encontra bem definido nestas palavras de Marx e Engels em O manifesto comunista: “Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’, ela (a burguesia) os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço frio do interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca. Substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio.”

Como frisa Maurício Abdalla, infelizmente em nossas universidades quase não há espaço para a filosofia das ciências. Se o positivismo é teoricamente rechaçado, na prática é vigente, embora criticado pela Nova Filosofia das Ciências, como Popper, Kuhn, Lakatos etc. Muitos professores universitários, em especial das áreas científicas e tecnológicas, permanecem alheios aos debates epistemológicos. São tributários de uma visão positivista ingênua das ciências. Acreditam que há uma ciência neutra, isenta de influências ideológicas e de subjetividades, mero fruto de investigações e pesquisas desinteressadas, de observações empíricas alheias a qualquer metafísica. O resultado dessa postura é que teorias científicas, carregadas de subjetivismo e condicionamentos culturais, são abraçadas como dogmas, sem conexão com a realidade mutante e o processo histórico dinâmico.

Cria-se assim a cisão entre ciências naturais e ciências humanas, ética e pesquisa científica, favorecendo aberrações como querer impedir qualquer sistema axiológico em pesquisas da biogenética, ou apregoar que os produtos transgênicos em nada afetam o equilíbrio ambiental e o organismo humano, ou que o uso excessivo de combustíveis fósseis não influi no aquecimento global. Eis a “cientocracia”, a ditadura da ciência. Eis o neoplatonismo pós-moderno, que elege cientistas-reis no lugar de filósofos-reis, como queria Platão.

 

* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella, de “Felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.
www.freibetto.org     twitter:@freibetto

 


 

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Feliz Ano-Novo

Frei Betto*

Feliz Ano-Novo a quem, neste ano que finda, se alimentou de amarguras, fartou-se de desavenças e se embriagou do fel da descompaixão. E aos que são reféns da inadimplência de afetos e semeiam joios nos jardins da desafeição.

Feliz Ano-Novo aos viciados em utopias, teimosos peregrinos das vias tortuosas da desesperança. E às bordadeiras de enigmas, aos decifradores de esfinges e aos arautos do acaso, para que encontrem a senda das revelações mistéricas.

Feliz Ano-Novo aos que buscam no réveillon a esbórnia da alma e mendigam as pequeninas moedas dos prazeres furtivos. E também aos que não caem em ciladas sedutoras nem arrastam os pés da soleira intransponível da ética.

Feliz Ano-Novo aos navegantes de sonhos profundos, pescadores de pérolas silenciosas e artesãos de corações compassivos. E aos que peregrinam pela Via Láctea e saem pela noite convencidos de que acendem estrelas e cavam buracos negros.

Feliz Ano-Novo a quem aprende a linguagem dos pássaros e, todas as manhãs, entoa o hino que desperta o sol. E aos que trazem em mãos o longo rosário das infinitudes e se enfileiram devotos na romaria dos que evocam deuses exilados da ortodoxia da fé.

Feliz Ano-Novo a quem se desdiz nos pequenos gestos do cotidiano, alça voo inflado pelo próprio ego e jamais se curva para ver seus pés trafegarem sobre tantas dores. E também a quem costura cicatrizes do afeto, limpa o pó dos ressentimentos acumulados e se abraça aos desafios como borboleta ao deixar o casulo.

Feliz Ano-Novo a quem formiga confidências nas trilhas da vida e indica aos semelhantes os doces caminhos da afabilidade. E a todos que, em plena escuridão, deitam olhos na direção do horizonte guiados pela bússola da despretensão.

Feliz Ano-Novo àqueles que, todas as manhãs, varrem da alma as ambições desmedidas e entoam hinos de gratidão pelos pequenos milagres que tecem a beleza da existência. E a todos que ainda estão por descobrir que integram o corpo de baile regido por uma sinfonia da qual, por enquanto, nossos ouvidos captam apenas tímidos acordes.

Feliz Ano-Novo aos que bradam contra a desfaçatez alheia e, ao se queixar das mazelas do mundo, acreditam que armas têm o poder de eliminar guerras. E a quem cultua flores sobre tumbas, extrai água do solo árido e colhe frutas em terrenos pantanosos.

Feliz Ano-Novo aos que já se demitiram da crença no humano e se refugiam em Deus como quem, do alto do prédio em chamas, estende as mãos à corda salvadora do helicóptero dos bombeiros. E a todos que transfiguram incêndios em harmoniosas luminárias na acidentada via dos invernos que nos resfriam.

Feliz Ano-Novo a todos que nunca se deram conta de que nossas células, moléculas e átomos são feitas de partículas elementares movidas por um único impulso: o da agregação em complexidade crescente. E a quem faz a travessia levado por Cronos e guiado por Deus, deixando no ano velho as pesadas bagagens que nos curvam os ombros e dificultam nossos passos rumo ao futuro.

Feliz Ano-Novo aos que subvertem em suas relações amorosas os preconceitos sociais e cultivam no íntimo a fé de que Deus não tem concorrente. E a quem não se mira no espelho da vaidade e tem olhos para aqueles que são excluídos pela cegueira da indiferença.

Feliz Ano-Novo aos que bordam girassóis na acolhência de seus afagos e enchem de balões coloridos seus sorrisos perdulários. E a quem guarda no peito lembranças mofadas de tempos tão longínquos que corre o risco de jamais se dar conta de que ingressou em pleno ano novo.

* Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta), entre outros livros.
www.freibetto.org     Twitter: @freibetto


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Adeus 2015

Frei Betto*

 

Chego ao início do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, e o grito alucinado frente à enxurrada de mazelas, estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral.

A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.

Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, sei que acordei em 2016. Espero que não apenas do sono pós-réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.

Adeus 2015. No ano que findou, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador. Como em ”Tom Jones“, de Fielding, meu idealismo factício se descosturou em realidade. Desabou o céu e me vi pisando o chão de estrelas, cujas pontas ferinas em nada evocavam a canção de Orestes Barbosa. E comunguei a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio inconsciente de que todo real é vulnerável.

Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta. Não sou dado ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não plenificam a alma do gosto de uva?

Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs. Quero-os agora em 2016, sem contudo me provocarem a vertigem das alturas.

Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, o que sempre deveria ter sido, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância.

Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável, na teimosia dos inconformados, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que clamam por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito.

Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.

 

* Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org     twitter:@freibetto

 


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