Na onda liberal em que o Direito do Trabalho navega, STF julga terceirização

Valdete Souto Severo *

 

Na pauta do STF das próximas semanas, mais um ataque em curso. O RE 958.252, que teve repercussão geral decretada no ARE 713.211 e é relatado pelo ministro Luiz Fux, será colocado em votação. O tema é a possibilidade de terceirizar inclusive o que a súmula 331 do TST denomina atividade-fim. Em resumo: qualquer atividade. A gravidade de uma decisão como essa será maior do que a aprovação do PLC 30, que versa sobre a mesma matéria, pois temos mais dificuldade em construir argumentos contra uma decisão do STF, do que contra texto de lei ou mesmo da Constituição vigente.

Na onda liberal em que o Direito do Trabalho navega, alvo de tsunamis e medusas, não impressiona que a escolha dos temas a serem submetidos à votação corresponda exatamente à agenda neoliberal de desmanche dos direitos sociais. Ou seja, ao pacote de medidas que constitui moeda de troca para o apoio que o governo golpista teve de parte importante do empresariado brasileiro, nele incluída a grande mídia, cujo papel foi decisivo, como bem sabemos.

É preciso admitir que o efeito será mais simbólico do que real, pois na realidade da vida a terceirização em atividades claramente essenciais ao empreendimento (motoristas em empresas de transporte, vendedores em lojas, etc) já vem sendo praticada com o beneplácito da Justiça do Trabalho. Ainda assim, trata-se de mais uma perda iminente, cujos efeitos deletérios serão sentidos pelas próximas gerações de trabalhadores. A terceirização é o mascaramento da relação que se dá entre trabalho e capital, com a introdução de um terceiro, atravessador, cuja única função é arregimentar força de trabalho, como se estivesse buscando mercadorias no Paraguai sem pagar o imposto de importação. Esse terceiro, via de regra empresa pequena, sem sede própria ou patrimônio, contrata os trabalhadores cuja força de trabalho será revertida em favor do tomador.

O tomador do trabalho, portanto aquele que realmente emprega a força de trabalho, pretenderá com isso economizar, ao eximir-se do pagamento das verbas salariais devidas ao ser humano que explora. Essa distância (apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua força de trabalho, provoca não apenas redução real da remuneração (porque afinal de contas todos esses “atravessadores” precisam lucrar com o negócio de repasse de força de trabalho), mas a invisibilidade, o descomprometimento, a fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à organização sindical.

O Direito do Trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores, atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, por exemplo, o capital consegue aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe de trabalhadores, promove a concorrência interna e, com isso, elimina a possibilidade de resistência coletiva organizada. Questões salariais, de condições do ambiente de trabalho, de assédio moral coletivo, não serão mais identificadas (isso já ocorre em ambientes invadidos pela terceirização) como questões comuns. Cada grupo travará a sua luta. Esse efeito da terceirização nos revela outra falácia. Se houvesse mesmo interesse em fortalecer a vontade coletiva, manifestada através do sindicato, a terceirização estaria sendo duramente combatida.

Com a decomposição da classe trabalhadora e o desmanche da identidade social que a terceirização opera, falar de “negociado sobre o legislado” só fará sentido se compreendermos que o objetivo almejado é a completa destruição dos parâmetros jurídicos da exploração do trabalho pelo capital. Não há preocupação alguma em respeitar a vontade coletiva dos trabalhadores, que nada tem de autônoma. O que há é um projeto que se desvela cada vez com mais clareza e crueldade, de desmanche das parcas conquistas sociais obtidas nas duas últimas décadas.

No âmbito da seguridade social, a permissão para terceirizar implica redução real do salário de milhões de brasileiros e a precariedade nos vínculos (contratos mais curtos), o que aumenta a rotatividade e, portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro desemprego. Se existisse realmente interesse em reduzir gastos públicos, como se quer fazer crer com a defesa da nefasta PEC 241, o incentivo à terceirização seria algo impensável. Há dados revelando que os acidentes e doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência entre os terceirizados.

Portanto, a autorização legal para ampliar as hipóteses de terceirização promoverá, também, o aumento do número de acidentes e doenças profissionais, com consequências sociais e previdenciárias graves. Essas consequências, especialmente a redução da remuneração, trazem consigo efeitos diretos sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da existência de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados.

Qualquer redução de direitos sociais implica, em última análise, piora das condições sociais de vida de toda a população, com reflexos inclusive na vida dos “incluídos”, que andam por aí de carro blindado e só passeiam em shoppings. Esse retrocesso certamente terá custos históricos que hoje sequer conseguimos projetar integralmente.

Estamos caminhando para a barbárie e apesar de termos ministros aparentemente comprometidos com o Direito do Trabalho, porque com ele construíram sua identidade, há um silêncio ensurdecedor no STF, como se existisse um pacto de destruição do Direito do Trabalho. Há aqueles que o capitaneiam, e não hesitam em reconhecer isso em todas as oportunidades de fala, e há os que nada dizem, ou dizem e fazem muito pouco.

A liminar concedida na decisão que será posta em pauta já dá a tônica do que vem por aí. Como na música do Legião Urbana, “beberam meu sangue e não me deixam viver, tem o meu destino pronto e não me deixam escolher; vem falar em liberdade pra depois me prender; pedem identidade pra depois me bater. Tiram todas minhas armas, como posso me defender?” A verdade é que ainda podemos nos defender da barbárie, mas só conseguiremos fazê-lo com movimento, mobilização e luta.

 

 

* Valdete Souto Severo é Juíza do Trabalho na 4ª Região, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidad de la Republica do Uruguai; Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Professora, Coordenadora da Especialização e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS.