Cinzas dos mortos

Frei Betto *

 

Há quem, ao chegar à cúpula do poder, se deixa embriagar pelas alturas. O Vaticano acaba de proibir que as cinzas de defuntos cremados sejam jogadas na natureza por seus parentes católicos. Só faltava esta: doutos cardeais do Vaticano preocupados com o destino que damos às cinzas de nossos mortos! Até parece que andam de conchavos com a máfia das funerárias.

Bem fez a Luiza Erundina, quando prefeita de São Paulo, que estatizou o serviço funerário. Nunca soube de um vivo, na capital paulista, reclamar do tratamento dado a seu morto. Tudo funciona bem, exceto a ameaça do prefeito eleito, movido a apetite privatizador, de acabar com o monopólio municipal dos funerais.

Minha mãe, falecida em 2011, deixou explícito que desejava ser cremada, pois o túmulo da família se encontra em um cemitério infestado de baratas, das quais ela tinha horror. “Nem morta!”, exclamava. Orientou os filhos a espargir suas cinzas no mar de Copacabana, bem defronte ao mais famoso hotel da orla. Não por requinte post-mortem, e sim porque ali ela viveu momentos felizes. Com o privilégio de poder vestir o maiô e tomar banho no Copacabana Palace, já que a filha do dono era casada com o primo dela.

Agora, os senhores cardeais da Cúria Romana proíbem espalhar cinzas dos mortos na natureza. “Para evitar qualquer tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não é permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra, na água ou de outro modo”, afirma o documento. Deveriam, sim, é estar ocupados com a excomunhão post-mortem do legendário mexicano Marcial Maciel, ultramontano pedófilo e corrupto, e não em prescrever, urbi et orbi, que as cinzas de mortos católicos devem ser depositadas em cemitérios.

A cremação é permitida pela Santa Sé desde 1963. E o documento agora divulgado frisa que “a Igreja não tem razões doutrinárias para impedir tal praxe, já que a cremação do cadáver não atinge a alma e não impede a onipotência divina de ressuscitar o corpo.” Ora, será que ainda o dualismo platônico não foi incinerado pelo Vaticano? Afinal, a alma não é uma joia virtual guardada no receptáculo chamado corpo. Segundo a ciência, toda matéria, incluído o nosso corpo, é energia condensada. E de acordo com a teologia, a alma é a nossa semelhança com o divino, do qual somos morada, na expressão de Jesus.

Quem paga a conta para armazenar cinzas em cemitérios? Jogá-las junto à muda de uma árvore frondosa, como fizemos com as do jornalista Sérgio de Souza, na fazenda de Raduan Nassar, foi bem mais litúrgico do que enfiá-las numa caixa e desembolsar o custo funerário.

Aliás, será que aquelas cinzas eram mesmo de minha mãe e do Serjão? Ouvi dizer que é muito caro elevar a temperatura a 1,2 mil graus centígrados para cremar um defunto. Para economizar dinheiro e energia, há crematórios que esperam juntar uns tantos falecidos para, então, transformá-los em cinzas. Por isso nunca elas são entregues no mesmo dia à família. O caixão desce ao som de uma trilha musical e fica ali nos porões à espera de seus companheiros de fornalha.

Parece que a preocupação dos doutos cardeais é com certos ritos fúnebres, eivados de sincretismo, celebrados na África. Ora, já que a questão é limpar o terreno católico de eventuais impurezas, a faxina deveria começar pelo próprio Vaticano: rebatizá-lo com um nome menos pagão, pois Vaticano deriva do deus etrusco Vagitanus, que abria a boca do bebê para ele dar o primeiro grito; livrar a guarda suíça daquela roupa de pajem medieval; proibir o uso anacrônico de batinas; e obrigar os cardeais romanos a seguirem o exemplo do papa Francisco e, em suas espaçosas residências, abrigarem ao menos uma família de refugiados.

 

* Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.
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