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Salve o dia 24 de fevereiro!

Rita da Costa Pereira *


Em 2010 o Brasil e o mundo assistiram a um grande acontecimento histórico. Pela primeira vez na história da política brasileira uma mulher assume o Poder Executivo Federal. Dilma Roussef foi eleita presidenta da República Federativa do Brasil.

De tão novo o fato, houve dúvidas até em relação à variação de gênero da palavra: não seria presidente? Não, é presidenta mesmo.

Já acostumados à “nova” ideia, de uma mulher presidenta, seguimos sem nos perguntar quando foi e como foi a conquista desse direito.

Os movimentos pelo sufrágio feminino no Brasil começaram a surgir na década de 1920, mas tomaram força na década de 1930, período que foi um marco na mudança política do Brasil. Getúlio Vargas assumiu o poder com a difícil tarefa de reorganizar a economia brasileira após a instabilidade provocada pela crise da bolsa americana, em 1929. Essa nova ordem trouxe transformações importantes no mundo do trabalho e uma classe trabalhadora operária emergiu desse processo. Com o aparecimento dos operários de fábrica, veio o discurso socialista. No que tange à mulher, os socialistas não viam mudança da realidade feminina sem a suplantação do capitalismo. Porém, o movimento feminista via a emancipação social feminina através da conquista de sua cidadania e por isso lutava pelo sufrágio feminino.

Uma das principais bandeiras de luta das feministas do período era a conquista do direito ao voto. A participação política era vista como uma forma de emancipação da mulher, o que nos remete à ideia da igualdade entre os sexos. A participação das mulheres na política, através do voto e do direito a serem eleitas como governantes em seus países e cidades, as toranavam, pelo menos politicamente, iguais perante os homens.

Nesse contexto, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto e em 1934, o direito de serem eleitas. O Código Eleitoral Brasileiro, através do Decreto nº 21,076, definiu o seu eleitorado : “Art. 2º É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem DISTINÇÃO de sexo, alistado na forma deste código”.

Imprtante ressaltar que saímos na frente de outros paise das Américas, com exceção dos Estados Unidos, em que alguns estados adotaram o voto feminino a partir de 1896. Na Argentina e no México, esse direito só foi conquistado em 1946. E no país da Revolução de 1789, a França, as mulheres só conquistaram esse direito em 1944.

A liderança que lutou pela conquista do voto feminino durante as décadas de 1920 e 1930 tem nome e sobrenome: Bertha Lutz. Ela fundou, em 1922, a FBPF – Federação Brasileira pelo Progesso Feminino, que, dentre outros objetivos, pretendia promover a educação e a profissionalização das mulheres. Funcionária do Museu Nacional, Lutz dedicou sua vida profissional à causa da emancipação feminina. Graduou-se em Ciências Naturais pela universidade de Sorbonne, em 1918, e sua trajetória de luta acabou dando a ela uma cadeira na Câmara dos Deputados, que foi perdida quando do fechamento do Congresso Nacional, em 1937, com a instauração do Estado Novo por Getúlio Vargas.

Olhando hoje para as esferas de poder de nosso país, talvez não tenhamos a dimensão da importância dessa data para nossa história. Afinal, vereadoras, deputadas, senadoras e presidenta já foram incorporadas à nossa história política. Mas não nos esqueçamos que essa conquista foi fruto de um longo processo histórico, desencadeado por homens e mulheres comprometidos com a causa da igualdade de gêneros.

24 de fevereiro de 2012: 80 anos de uma grande conquista para as mulheres brasileiras.


 


 


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* Rita da Costa Pereira é graduada em História pela Universidade Gama Filho e pós-graduada em História Contemporânea pela Universidade Cândido Mendes

Fonte: Rita da Costa Pereira

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A Glória da arte

Paulinho Santos *


 


 


Aconteceu, durante os dias 27 de janeiro a 05 de fevereiro de 2012, um evento artístico inédito para o local e que movimentou a Praça Paris, na Glória, RJ, até então relegada a atividades diurnas, com um contingente de pessoas que nunca tinham tido motivo ou estímulo para frequentar a praça. Famílias, casais de todas as idades, idosos, crianças, turistas do Brasil e de todo o mundo e fotógrafos amadores e profissionais passeando despreocupadamente pela Praça e pelo bairro sem medo ou pressa. Como foi bom ver a arte movendo as pessoas, numa festa alegre e segura.


 


O artista plástico italiano Giancarlo Neri espalhou pelos jardins da praça 9 mil globos de luz chineses brancos, que mudavam de cor, trazendo para o Rio a instalação que já exibiu em Roma, Madri e Dubai. A ideia da obra “Máximo silêncio em Paris” (o nome da versão carioca é uma citação da instalação original, de 2007, apresentada no Circo Massimo de Roma, durante evento chamado Notte Bianca) começou quando a mulher do artista comprou numa loja popular um globo para sua casa. Ela percebeu que o globo mudava de cor quando a luz estava acesa, e esse fato despertou em Giancarlo o desejo de montar uma obra de arte utilizando esses globos.


 


O resultado foi uma instalação singela, com os globos formando um mar de luzes e cores pelos jardins da Praça, atraindo a atenção e a visitação de milhares de pessoas, que lotaram a Praça das 19h às 00h durante uma semana. Durou pouco, mas deixará marcas no bairro e na cidade.


 


Pude visualizar a instalação diariamente do alto, da janela do meu apartamento, localizado em frente à Praça, e também a visitei por quatro noites. De cima, a visão era fantástica, com as luzes dos globos contrastando com todas as outras luzes do bairro, em torno da Praça. De perto, era simplesmente emocionante.


 


Foi impressionante constatar o poder da arte. Simples bolas coloridas iluminadas e o mundo ficou mais leve, naquele momento, para todos que visitaram a praça, e que foram tocados pela beleza da instalação. Os sorrisos de encantamento dos visitantes era uma demonstração clara de que a arte, para tocar a alma, não requer sofisticação ou grandes rebuscamentos. Basta a sensibilidade e o talento do artista, que entram em sintonia com o olhar do espectador, fazendo a conexão e a transmissão da emoção que se pretende atingir.


 


Este evento foi, para mim, uma demonstração clara de que o poder público pode, de forma racional e em parceria com entidades privadas, transformar a cidade para melhor, sem onerar o contribuinte e sem agredir visualmente o espaço público com publicidade ostensiva. Temos alguns recentes exemplos de parcerias equivocadas, como as bicicletas de aluguel da orla, que ferem o senso estético e agridem o bom senso em prol de um retorno econômico para a empresa patrocinadora, através da publicidade com a pintura e a exibição de sua logomarca na frente e na lateral das referidas bicicletas. No caso da instalação na Praça, a maioria dos visitantes nem deve ter sabido que havia o patrocínio de uma operadora de telefonia, que viabilizou a montagem.


 


As praças e jardins da cidade precisam ser ocupadas pela população para justificarem a sua existência. E para isso, é preciso que o município e o estado garantam limpeza,


 


manutenção e segurança, dia e noite, de todos os logradouros. A cidade tem que ser, cada vez mais, um espaço de uso coletivo, com o ordenamento e a racionalização do trânsito, com a melhoria da qualidade e a extensão do transporte coletivo, garantindo a plena circulação da população.


 


Quando as condições adequadas se apresentam, a população responde, prestigiando e valorizando as iniciativas positivas. Encerrada a instalação, a frequência cotidiana de pessoas na praça aumentou, o que demonstra que os bons e belos espaços públicos, depois de descobertos, passam a fazer parte da agenda dos cariocas. Ganha a cidade e ganham os moradores dela, pois a circulação e a ocupação desses espaços cria um círculo virtuoso, que só traz benefícios a todos.


 


Caminhando pelas ruas da cidade, principalmente no Centro, vemos a quantidade de espaços públicos que são desperdiçados para uso pela população, com ruas mal cuidadas, mal iluminadas, casario em péssimo estado de conservação, enfim, com um ar de abandono que desestimula a visitação e a circulação das pessoas. Essa situação pode e precisa ser revertida.


 


Iniciativas como essa do Máximo silêncio em Paris devem ser estimuladas pelo poder público, contribuindo para humanizar e transformar a cidade e a população com a magia da arte, justificando o título de Cidade Maravilhosa.


 


Nós, cariocas, agradecemos.


 


 


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* Paulinho Santos é bacharel em Letras e fotógrafo amador

Fonte: Paulinho Santos

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BARTÔ, O MAGO DA PALAVRA

O coração de Bartolomeu Campos de Queirós (1944-2012),  pleno de amor e arte, parou na madrugada de 16 de janeiro. Meu querido amigo  Bartô transvivenciou. Entrou em “encantamento”, diria Guimarães  Rosa.


Bartô tinha 67 anos e mais de 70 livros  publicados. A ele dediquei meu mais recente romance, Minas do ouro:  “Para Bartolomeu Campos de Queirós nascido, como eu, na mesma terra mineira,  no mesmo ano, no mesmo mês, no mesmo dia, e condenado, como eu, à mesma sina:  escrever.”


Em 2003, mereci dele a dedicatória do  livro Menino de Belém. Era um mago da palavra. Não fazia poesia, não  escrevia prosa – criava proesia. Sua prosa é arrebatadoramente poética,  como o comprova seu último romance Vermelho amargo, de forte conotação  autobiográfica.


Sua mãe morreu aos 33 anos, de câncer, quando ele  tinha 6. Lembrava-se que ela sofria dores atrozes, a ponto de o bispo  autorizar que se apressasse a morte dela com uma injeção. Às vezes a dor era  tanta que ela se punha a entoar canto lírico. Bartô, por vezes, ligava para  sua amiga Maria Lúcia Godoy, cantora lírica, para que ela cantasse para ele ao  telefone.


Equivocam-se os que classificam sua obra  de literatura infantil, embora tenha angariado os mais importantes prêmios  nacionais e internacionais neste gênero. Sua escrita é universal, encanta  crianças e adultos. Como artesão da palavra, trabalhava cuidadosamente cada  vocábulo, cada frase, até extrair toda a polissemia possível, assim como a  abelha suga o néctar de uma flor.


Bartô morava em Belo Horizonte, no apartamento que  pertenceu à poeta Henriqueta Lisboa – cuja estátua se ergue à porta do prédio,  na Savassi. Gostava da solidão. Precisava dela para escrever. Chegava a pedir  à cozinheira que saísse mais cedo. E só admitia que o silêncio fosse quebrado  pela música, que ele escutava deitado no chão.


Nos últimos anos, mais lia do que escrevia. E o fazia  com um prazer quase luxurioso. Narrou-me como se deleitava em abrir um novo  livro, reformular suas ideias e conceitos, adquirir novos conhecimentos… 


Tornou-se escritor por acaso. Estudava comunicação e  expressão em Paris, quando lhe pediram enviar um texto a um concurso, que o  premiou. Mas custou a se assumir como autor. Para ele, isso era secundário. A  prioridade era o emprego no MEC, num departamento de investigação de qualidade  de ensino, que o obrigava a viajar Amazônia afora. Seu chefe, Abgar Renault,  lhe dava toda liberdade.


Nos últimos anos, pouco saía de casa. Desde que se viu  obrigado a fazer hemodiálise três vezes por semana, caminhava a passos miúdos,  os ombros curvados e, no rosto, a perplexidade diante dos mistérios da vida. A  fala era contida, proverbial, mesmo quando fazia palestras. Seus silêncios  ecoavam.


Fazia questão de não abandonar o cigarro  e tomar um chope antes de submeter-se à hemodiálise. Dizia que, assim, o  tratamento seria compensado…


Seu ponto de encontro era a Livraria Quixote, na rua  Fernandes Tourinho, onde há um espaço em homenagem a ele. Ali revia amigos,  lançava livros, tomava café da manhã. Foi ali que nos vimos pela última vez,  na véspera do Ano-Novo, quando me deu de presente o romance epistolar A  sociedade literária e a torta de casca de batata, de Ann Shaffer e Annie  Barrows.


Há três anos ele me propusera um projeto  literário a quatro mãos: uma troca de correspondência sobre literatura,  conjuntura política, vivências. Nunca o efetivamos. Em nosso encontro de fim  de ano respondeu-me quando indaguei o que andava escrevendo: “Cartas para mim  mesmo.”


Bartô contava que, quando criança, ficava  intrigado com o mistério de como pouco mais de vinte letras podem registrar na  escrita tudo que a cabeça pensa… Orgulhoso, disse que aprendera a escrever  com o avô, marceneiro, que morava em Pitangui (MG). Tirara a sorte grande na  loteria e, assim, trocou a madeira pela literatura. Ao se sentir inspirado,  tomava em mãos o lápis próprio para marcar medidas na madeira e redigia suas  histórias nas paredes da casa. Quando o avô morreu, tiraram da parede da sala  o relógio em forma de oito. Era o único espaço vazio de  textos…


Bartô era um artista profundamente  espiritualizado. Desde que morou em Paris tornou-se devoto de São Charbel  (1828-1898), libanês, canonizado em 1997. Disse que o escolhera porque é um  santo de poucos devotos e, portanto, mais disponível para atender às suas  preces…  E mostrou-me a estampa do monge de longas barbas  brancas.


Meu único consolo é a certeza de que  Bartolomeu Campos de Queirós vive, agora, imortalizado em suas obras  literárias. Reproduzo aqui o que escrevi a ele, em maio de 1998, após ler  Escritura: “Sua escrita é canto, luz, vereda e afago. Cada frase  lindamente esculpida! Proíba-se de tudo o mais para só escrever, porque é a  sua única e irrecorrível sentença de vida.”

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear  estrelas” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

 
Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Fonte: Frei Betto

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MEU NOME É MEDO

      Meu propósito é dominar corações e mentes. Incutir em cada um o medo do outro. Medo de estender a mão, tocar em cumprimento a pele impregnada de bactérias nocivas.
      Medo de abrir a porta e receber um intruso ansioso por solidariedade e apoio. Com certeza ele quer arrancar-lhe algum dinheiro ou bem. Pior: quer o seu afeto. Melhor não ceder ao apelo sedutor. Evite o sofrimento, tenha medo de amar.
      Quero todos com medo da comunidade, do vizinho, do colega de trabalho. Medo do trânsito caótico, das rodovias assassinas, dos guardas que intimidam e achacam. Medo da rua e do mundo.
      Convém trancar-se em casa, fazer-se prisioneiro da fragilidade e da desconfiança. Reforce a segurança das portas com chaves e ferrolhos; cubra as janelas de grades; espalhe alarmes e  eletrônicos por todos os cantos.
      Faça de seu prédio ou condomínio uma penitenciária de luxo, repleta de controles e vigilantes, e no qual o clima de hostilidade reinante desperte, em cada visitante, uma ojeriza ao prazer da amizade.
      Tema o Estado e seus tentáculos burocráticos, os pesados impostos que lhe cobra, as forças policiais e os serviços de informação e espionagem. Quem garante que seu telefone não está grampeado? Suas mensagens eletrônicas não são captadas por terceiros?
      O mais prudente é evitar ser transparente, sincero, bem humorado. Sua atitude pode ser interpretada como irreverência ou mesmo ameaça ao sistema.
      Fuja de quem não se compara a você em classe, renda, cultura e cor da pele; dos olhos invejosos, da cobiça, do abraço de quem pretende enfiar-lhe a faca pelas costas.
      Tenha medo da velhice. Ela é prenúncio da morte. Abomine o crescimento aritmético de sua idade. Jamais empregue o termo “velho”; quando muito, admita “idoso”.
      Tema a gordura que lhe estufa as carnes, a ruga a despontar no rosto, a celulite na perna, o fio branco no cabelo. É horrível perder a juventude, a esbeltez, o corpo desejado!
      Tenha medo da mais terrível inimiga: a morte. Ela se insinua quando você fica doente. Saiba que ninguém está interessado em sua saúde. Em seu bolso, sim. Basta adoecer para verificar como haverão de humilhá-lo os serviços médicos e os planos de saúde.
      Não se mova! Por que viajar, abandonar o conforto doméstico e se arriscar num acidente de ônibus, navio ou avião? Nunca se sabe quando, onde e como os terroristas atacarão. Quem diria que numa bucólica ilha da pacífica Noruega o terror provocaria um genocídio?
      Meu nome é medo. Acolha-me em sua vida! Sei que perderá a liberdade, a alegria de viver, o prazer de ser feliz. Mas darei a você o que mais anseia: segurança!
      Em meus braços, você estará tão seguro quanto um defunto em seu caixão, a quem ninguém jamais poderá infligir nenhum mal, nem mesmo amedrontá-lo.
 
Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 


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Fonte: Frei Betto

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SALVAR VIDAS OU O CAPITAL?

 O melhor Papai-Noel do mundo mereceram 523 instituições financeiras europeias quatro dias antes do Natal: 489 bilhões de euros (o equivalente a R$ 1,23 trilhão), emprestados pelo BCE (Banco Central Europeu) a juros de 1 % ao ano!


 Curiosa a lógica que rege o sistema capitalista: nunca há recursos para salvar vidas, erradicar a fome, reduzir a degradação ambiental, produzir medicamentos e distribui-los gratuitamente. Em se tratando da saúde dos bancos, o dinheiro aparece num passe de mágica!


 Há, contudo, um aspecto preocupante em tamanha generosidade: se tantas instituições financeiras entraram na fila do bolsa-BCE, é sinal de que não andam bem das pernas…


 Quais os fundamentos dessa lógica que considera mais importante salvar o Mercado que vidas humanas? Um deles é este mito de nossa cultura: o sacrifício de Isaac por Abraão (Gênesis 22, 1-19).


 No relato bíblico, Abraão deve provar a sua fé sacrificando a Javé seu único filho, Isaac. No exato momento em que, no alto da montanha, prepara a faca para matar o filho, o anjo intervém e impede Abraão de consumar o ato. A prova de fé fora dada pela disposição de matar. Em recompensa, Javé cobre Abraão de bênçãos e multiplica-lhe a descendência como as estrelas do céu e as areias do mar.


 Essa leitura, pela ótica do poder, aponta a morte como caminho para a vida. Toda grande causa – como a fé em Javé – exige pequenos sacrifícios que acentuem a magnitude dos ideais abraçados. Assim, a morte provocada, fruto do desinteresse do Mercado por vidas humanas, passa a integrar a lógica do poder, como o sacrifício “necessário” do filho Isaac pelo pai Abraão, em obediência à vontade soberana de Deus.


 Abraão era o intermediário entre o filho e Deus, assim como o FMI e o BCE fazem a ponte entre os bancos e os ideais de prosperidade capitalista dos governos europeus – que, para escapar da crise, devem promover sacrifícios.


 Essa mesma lógica informa o inconsciente do patrão que sonega o salário de seus empregados sob pretexto de capitalizar e multiplicar a prosperidade geral, e criar mais empregos. Também leva o governo a acusar as greves de responsáveis pelo caos econômico, mesmo sabendo que resultam dos baixos salários pagos aos que tanto trabalham sem ao menos a recompensa de uma vida digna.


 O deus da razão do Mercado merece, como prova de fidelidade, o sacrifício de todo um povo. Todos os ideais estão  prenhes de promessas de vida: a prosperidade dos bancos credores, a capitalização das empresas ou o ajuste fiscal do governo. Salva-se o abstrato em detrimento do concreto, a vida humana.


 O espantoso dessa lógica é admitir, como mediação, a morte anunciada. Mata-se cruelmente através do corte de subsídios a programas sociais; da desregulamentação das relações trabalhistas; do incentivo ao desemprego; dos ajustes fiscais draconianos; da recusa de conceder aos aposentados a qualidade de uma velhice decente.


 A lógica cotidiana do assassinato é sutil e esmerada. Aqueles que têm admitem como natural a despossessão dos que não têm. Qualquer ameaça à lógica cumulativa do sistema  é uma ofensa ao deus da liberdade ocidental ou da livre iniciativa. Exige-se o sacrifício como prova de fidelidade. Não importa que Isaac seja filho único. Abraão deve provar sua fidelidade a Javé. E não há maior prova do que a disposição de matar a vida mais querida.


 A lógica da vida encara o relato bíblico pelos olhos de Isaac. Este não sabia que seria assassinado, tanto que indagou ao pai onde se encontrava o cordeiro destinado ao sacrifício. Abraão cumpriu todas as condições para matar o filho. Subjugou-o, amarrou-o, colocou-o sobre a lenha preparada para a fogueira e empunhou a faca para degolá-lo.


 No entanto, inspirado pelo anjo, Abraão recuou. Não aceitou a lógica da morte. Subverteu o preceito que obrigava os pais a sacrificarem seus primogênitos. Rejeitou as razões do poder. À lei que exigia a morte, Abraão respondeu com a vida e pôs em risco a sua própria, o que o forçou a mudar de território.


 Se não mudarmos de território – sobretudo no modo de encarar a realidade -, como Abraão, continuaremos a prestar culto e adoração a Mamom. Continuaremos empenhados em salvar o capital, não vidas, e muito menos a saúde do planeta.

Frei Betto é escritor, autor de “Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin” (Vozes), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 
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Fonte: Frei Betto

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DITADURA ECONÔMICA

A pobreza já afeta 115 milhões de pessoas nos 27 países da União Europeia. Quase 25 % da população. E ameaça mais 150 milhões de habitantes.
 Na Espanha, a taxa de desemprego atinge 22,8 % . Grécia e Itália encontram-se sob intervenção branca, governados por primeiros-ministros indicados pelo FMI. Irlanda e Portugal estão inadimplentes. Na Bélgica e no Reino Unido, manifestações de rua confirmam que “a festa acabou”.
 Agora, o Banco Central da União Europeia quer nomear, para cada país em crise, um interventor de controle orçamentário. É a oficialização da ditadura econômica. Reino Unido e República Tcheca votaram contra. Porém, os outros 25 países da União Europeia aprovaram. Resta saber se a Grécia, o primeiro na lista da ditadura econômica, vai aceitar abrir mão de sua soberania e entregar suas contas ao controle externo.
 A atual crise internacional é muito mais profunda. Não se resume à turbulência financeira. Está em crise um paradigma civilizatório centrado na crença de que pode haver crescimento econômico ilimitado num planeta de recursos infinitos… Esse paradigma identifica felicidade com riqueza; bem-estar com acumulação de bens materiais; progresso com consumismo.
 Todas as dimensões da vida – nossa e do planeta – sofrem hoje acelerado processo de mercantilização. O capitalismo é o reino do desejo infinito atolado no paradoxo de se impor num planeta finito, com recursos naturais limitados e capacidade populacional restrita.
 A lógica da acumulação é mais autoritária que todos os sistemas ditatoriais conhecidos ao longo da história. Ela ignora a diversidade cultural, a biodiversidade, e comete o grave erro de dividir a humanidade entre os que têm acesso aos recentes avanços da tecnociência, em especial biotecnologia e nanotecnologia, e os que não têm. Daí seu efeito mais nefasto: a acumulação ou posse da riqueza em mãos de uns poucos se processa graças à desposessão e exclusão de muitos.
 A questão não é saber se o capitalismo sairá ou não da enfermaria de Davos em condições de sobrevida, ainda que obrigado a ingerir remédios cada vez mais amargos, como suprimir a democracia e trocar o voto popular pelas agências de avaliação econômica, e os políticos por executivos financeiros, como ocorreu agora na Grécia e na Itália.
 A questão é saber se a humanidade, como civilização, sobreviverá ao colapso de um sistema que associa cidadania com posse e civilização com paradigma consumista anglossaxônico.
 Estamos às vésperas da Rio+20. E ninguém ignora que esta casa que habitamos, o planeta Terra, sofre alterações climáticas surpreendentes. Faz frio no verão e calor no inverno. Águas são contaminadas, florestas devastadas, alimentos envenenados por agrotóxicos e pesticidas.
 O resultado são secas, inundações, perda da diversidade genética, solos desertificados… Há na comunidade científica consenso de que o efeito estufa e, portanto, o aquecimento global, resulta da ação deletérea do ser humano.
 Todos os esforços para proteger a vida no planeta têm fracassado até agora. Em Durban, em dezembro de 2011, o máximo que se avançou foi a criação de um grupo de trabalho para negociar um novo acordo de redução do efeito estufa… a ser aprovado em 2015, e colocado em prática em 2020!
 Enquanto isso, o Departamento de Energia dos EUA calculou que, em 2010, foram emitidas 564 milhões de toneladas de gases de aquecimento global. Isto é, 6 % a mais do que no ano anterior.
 Por que não se consegue avançar? Ora, a lógica mercantil impede. Basta dizer que os países do G8 propõem, não salvar a vida humana e do planeta, mas criar um mercado internacional de carbono ou energia suja, de modo a permitir aos países desenvolvidos comprar cotas de poluição não preenchidas por outros países pobres ou em desenvolvimento.
 E o que a ONU tem a dizer? Nada, porque não consegue livrar-se da prisão ideológica da lógica do mercado. Propõe, portanto, à Rio+20 uma falácia chamada “Economia Verde”. Acredita que a saída reside em mecanismos de mercado e soluções tecnológicas, sem alterar as relações de poder, reduzir a desigualdade social e criar um mundo ambientalmente sustentável no qual todos tenham direito ao bem-estar.
 Os donos e grandes beneficiários do sistema capitalista – 10 % da população mundial – abocanham 84 % da riqueza global e cultivam o dogma da imaculada concepção de que basta limar os dentes do tubarão para que ele deixe de ser agressivo…
 
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 


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Fonte: Frei Betto

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PAUTA 2012

Frei Betto

Tudo indica que não teremos pela frente um ano fácil. A crise do capitalismo, que não é apenas financeira, mas estrutural, começa a afetar as economias emergentes, inclusive a do Brasil. Nada indica que os países da zona do euro vão deter a corrosão de suas economias e manter a mesma moeda.

Se a China, os EUA e a União Europeia reduzirem suas importações, o PIB brasileiro, que já chega ao patamar de R$ 4 trilhões (= US$ 2,5 trilhões) cairá junto com o crescimento do país. O governo Dilma dará tratos à bola para aquecer o mercado interno, segurar a inflação e favorecer o crédito. Tomara que consiga. Mas tudo indica que nessa viagem rumo ao desenvolvimento o Brasil enfrentará sérias turbulências.

Os próximos meses terão, como pauta prioritária, as eleições municipais de outubro. De novo, muita baixaria vai rolar… O importante é o eleitor não torcer o nariz para o processo eleitoral. Lembre-se: quem tem nojo de política é governado por quem não tem.

Deixo uma sugestão: faça uma lista de 10 prioridades que você e sua comunidade (associação, sindicato, ONG etc) consideram urgentes ao seu município. Tire cópias. Toda vez que um candidato a prefeito ou vereador vier pedir voto, pergunte, sem mostrar a lista, se concorda com os 10 pontos. Se disser que sim, apresente a lista e exija que ele assine. Se não assinar, alerte os eleitores.

Para que os candidatos se comprometam com metas e prazos, consulte as propostas da Rede Nossa São Paulo:www.nossasaopaulo.org.br

Outro assunto que dominará o ano são as obras da COPA. Haja esforço para que terminem antes de a bola rolar e haja fiscalização para evitar (ou ao menos reduzir) a corrupção via superfaturamento!

Entre 4 e 6 de junho, o Brasil sediará o megaevento ambiental conhecido como Rio+20 (Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável) – vinte anos após a Eco 92, que reuniu líderes mundiais, inclusive Fidel Castro. A proposta de realização deste evento foi de Lula, em 2007.

A Eco 92 rendeu frutos importantes, como a Agenda 21, a Carta da Terra, e as convenções do Clima e da Biodiversidade.

A diplomacia brasileira terá de fazer muito esforço para trazer à Cidade Maravilhosa ao menos meia dúzia de chefes de Estado do G8, os países que governam o planeta. Isso porque o G8 está cada vez menos interessado em preservação ambiental, e mais em tirar suas nações da recessão.

Paralela à Rio+20 haverá a Cúpula dos Povos, que reunirá ONGs e empresas, universidades e associações, enfim, segmentos da sociedade civil interessados na questão ambiental.

E atenção: o Calendário Maia termina em 2012. Há quem encare isso como anúncio do fim do mundo! Há quem afirme ser o início de novo ciclo cósmico! Não se afobe. Faça de 2012 o fim de tudo isso que reduz sua qualidade de vida e o início do que pode melhorá-la. Garanto que você terá um feliz ano novo!

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 


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Fonte: Frei Betto

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FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2012

Porto Alegre abrigará, de 24 a 29 deste mês de  janeiro, o FSM (Fórum Social Mundial) centrado no tema “Crise capitalista –  justiça social e ambiental”. O evento é uma das atividades preparatórias da  Cúpula dos Povos da Rio+20, que se reunirá na Cidade Maravilhosa entre 20 e 21  de junho de 2012.


    O FSM se realiza no momento em que vários povos se  movimentam por liberdade e democracia, como ocorre no mundo árabe. No  Ocidente, a crise do capitalismo suscita o movimento Ocupem Wall Street. As  duas manifestações têm em comum clareza quanto ao que não se quer, sem,  no entanto, apresentar propostas alternativas viáveis.


    No último 15 de outubro, houve mobilizações em quase 1  mil cidades de 82 países! No mundo andino, povos indígenas questionam o modelo  capitalista de desenvolvimento e resgatam os valores do bem viver – sumak  kawsay.


    Como resultado da incompetência de um  sistema que prioriza a acumulação privada da riqueza em detrimento dos  direitos humanos, sociais e ambientais, o capitalismo conhece, agora, nova  crise. Diante dela, a reação dos donos do poder é o samba de uma nota só:  austeridade, cortes, aumento de impostos e desemprego, flexibilização das leis  trabalhistas, congelamento de salários.


    Salvam-se os bancos e dane-se a população. Mais  miséria à vista; jovens sem perspectiva de futuro, condenados à droga e ao  crime; fluxos migratórios desordenados.


    Do lado da esperança, e após três décadas de  globocolonização neoliberal, as manifestações sinalizam valores positivos como  a empatia pelo sofrimento alheio, a solidariedade, a defesa da igualdade, a  busca de justiça, o reconhecimento da diversidade e a preservação ambiental.  Sem esse universo ético não há esperança de se construir um outro mundo  possível.


    É preciso reinventar a convivência  humana. E, da parte dos donos do poder, não há nenhuma proposta fora da  preocupação de não refrear a roleta do cassino global. A crise ambiental é  ignorada pela ONU, pelos governos dos EUA e da União Europeia, e nada garante  que a Rio+20 conseguirá reunir, como na Eco-92, chefes de Estado dos países do  G8.


    Mercantiliza-se a vida, destroem-se os  ecossistemas, reduz-se rapidamente a biodiversidade. Em todo o planeta,  acentuam-se os empreendimentos extrativistas, sem nenhuma preocupação com seus  impactos sociais e ambientais. Áreas fundiárias são descaradamente  transnacionalizadas em países do Terceiro Mundo.


    Em Belém 2009 e Dakar 2011, o FSM deu passos  significativos na busca de alternativas ao desenvolvimentismo e ao consumismo,  tendo em vista a preservação ambiental. Agora, a luta social é oxigenada pela  busca de democracia e soberania nos países árabes, e as amplas manifestações,  na Europa e nos EUA, contra a lógica necrófila do neoliberalismo. 


    Se outro mundo é possível, isso se dará a  partir da convergência de todas essas mobilizações, da sincronia entre todos  que lutam pela preservação ambiental, do diálogo entre as forças sociais e  políticas convencidas de que dentro do capitalismo não há salvação para o  futuro da humanidade.


    O FSM de Porto Alegre 2012 deverá ser o ponto de  encontro de sujeitos políticos capazes de apontar uma saída para a crise e as  bases de construção de um novo modelo civilizatório, no qual predomine a  globalização da solidariedade. E dele poderão brotar propostas temáticas para  abastecer aqueles que, em junho, se encontrarão na Cúpula dos Povos  (Rio+20).


    A dinâmica do FSM 2012 será à base de  grupos temáticos, de modo a acolher experiências e contribuições dos  participantes em torno de quatro eixos transversais: 1. Fundamentos éticos e  filosóficos: subjetividade, dominação e emancipação; 2. Direitos humanos,  povos, territórios e defesa da Mãe-Terra; 3. Produção, distribuição e consumo:  acesso à riqueza, bens comuns e economia de transição; 4. Sujeitos políticos,  arquitetura de poder e democracia.


    Mais informações: http://www.fstematico2012.org.br/index.php?link=48www.dialogos2012.org <http://www.dialogos2012.org> ;  [email protected][email protected]



    Frei Betto é escritor, autor, em parceria com  Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade”  (Agir), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

    Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária ([email protected])

Fonte: Frei Betto

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FELIZ 2012

         Desejo  um Feliz Ano-Novo onde, se Deus quiser, todas as crianças, ao ligarem a TV,  recebam um banho de Mozart, Pixinguinha e Noel Rosa; aprendam a diferença  entre impressionistas e expressionistas; vejam espetáculos que reconstituem a  Balaiada, a Confederação do Equador e a Guerra dos Emboabas; e durmam após  fazer suas orações. 
 
         Quero um  Ano-Novo em que, no campo, todos tenham seu pedaço de terra, onde vicejem  laranjas e alfaces, e voejem bem-te-vis entre vacas leiteiras. Na cidade, um  teto sob o qual haja um  fogão com panelas cheias, a sala atapetada por  remendos coloridos, a foto do casal exposta em moldura oval sobre o sofá. 
 
         Espero um  Ano-Novo em que as igrejas abram portas ao silêncio do coração, o órgão  sussurre o cantar dos anjos, a Bíblia seja repartida como pão. A fé, de mãos  dadas com a justiça, faça com que o céu deixe de concentrar o olhar daqueles  aos quais é negada a felicidade nesta  terra.


         Um Feliz  Ano-Novo com casais ociosos na arte de amar, o lar recendendo a perfume, os  filhos contemplando o rosto apaixonado dos pais, a família tão entretida no  diálogo que nem se dá conta de que o televisor é um aparelho mudo e cego num  canto da  sala.
 
         Desejo  um Ano-Novo em que os sonhos libertários sejam tão fortes que os jovens, com o  coração a pulsar ideais, não recorram à química das drogas, não temam o futuro  nem expressem-se em dialetos ininteligíveis. Sejam, todos eles, viciados em  utopia. 
 
         Espero um  Ano-Novo em que cada um de nós evite alfinetar rancores nas dobras do coração  e lave as paredes da memória de iras e mágoas; não aposte corrida com o tempo  nem marque a velocidade da vida pelos batimentos  cardíacos.


         Um  Ano-Novo para saborear a brevidade da existência como se ela fosse perene, em  companhia de ourives de encantos, cujos hábeis dedos incrustam na rotina dos  dias joias ternas e  eternas.
 
         Quero  um Ano-Novo em que a cada um seja assegurado o direito ao trabalho, a honra do  salário digno, as condições humanas de vida, as potencialidades da profissão e  a alegria da vocação. Um novo ano capaz de saciar a nossa fome de pão e de  beleza. 
 
         Rogo por  um Ano-Novo em que a polícia seja conhecida pelas vidas que protege e não  pelos assassinatos que comete; os presos reeducados para a vida social; e que  os pobres logrem repor nos olhos da Justiça a tarja da cegueira que lhe  imprime isenção. 
 
         Um  Ano-Novo sem políticos mentirosos, autoridades arrogantes, funcionários  corruptos, bajuladores de toda espécie. Livre de arroubos infantis, seja a  política a multiplicação dos pães sem milagres, dever de uns e direito de  todos.


         Espero um  Ano-Novo em que as cidades voltem a ter praças arborizadas; as praças, bancos  acolhedores; os bancos, cidadãos entregues ao sadio ócio de contemplar a  natureza, ouvir no silêncio a voz de Deus e festejar com os amigos as  minudências da vida – um leque de memórias, um jogo de cartas, o riso aberto  por aquele que se destaca como o melhor contador de  piadas.

Desejo um Ano-Novo em que o líder dos direitos  humanos não humilhe a mulher em casa; a professora de cidadania não atire  papel no chão; as crianças cedam o lugar aos mais velhos; e a distância entre  o público e o privado seja encurtada pela ponte da coerência. 
 
         Quero um  Ano-Novo de livros saboreados como pipoca, o corpo menos entupido de gorduras,  a mente livre do estresse, o espírito matriculado num corpo de baile, ao som  dos mistérios mais profundos. 
 
         Desejo um  Ano-Novo em que o governo evite que o nosso povo seja afetado pela crise do  capitalismo, livre a população do pesado tributo da degradação social, e tome  no colo milhões de crianças precocemente condenadas ao trabalho, sem outra  fantasia senão o medo da  morte.



         Espero  um Ano-Novo cujo principal evento seja a inauguração do Salão da Pessoa, onde  se apresentem alternativas para que nunca mais um ser humano se sinta ameaçado  pela miséria ou privado de pão, paz e prazer.


 Um Ano-Novo em que  a competitividade ceda lugar à solidariedade; a acumulação à partilha; a  ambição à meditação; a agressão ao respeito; a idolatria por dinheiro ao  espírito das Bem-Aventuranças. 
 
         Aspiro a  um Ano-Novo de pássaros orquestrados pela aurora, rios desnudados pela  transparência das águas, pulmões exultantes de ar puro e mesa farta de  alimentos  despoluídos.



         Rogo  por um Ano-Novo que jamais fique velho, assim como os carvalhos que nos dão  sombra, a filosofia dos gregos, a luz do Sol, a sabedoria de Jó, o esplendor  das montanhas de Minas, a música gregoriana.


 Um ano tão novo que  traga a impressão de que tudo renasce: o dia, a exuberância do mar, a  esperança e nossa capacidade de amar. Exceto o que no passado nos fez menos  belos e bons.



Frei Betto é escritor, e autor, em parceria com  Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Vozes) entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

 
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Fonte: Frei Betto

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A ARTE DE REINVENTAR A VIDA

Finda o ano, inicia-se o novo. No íntimo, o propósito de “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”… Começar de novo. Será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”?


Atribui-se a Gandhi esta lista dos Sete Pecados Sociais: 1) Prazeres sem escrúpulos; 2) Riqueza sem trabalho; 3) Comércio sem moral; 4) Conhecimento sem sabedoria; 5) Ciência sem humanismo; 6) Política sem idealismo; 7) Religião sem amor.


E agora, José? No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas!


Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Albert, o Einstein e o Schweitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta de fama, riqueza e beleza.


Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), uma parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um “esplendor” que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários.


A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimentos de pessoas moribundas:


1) Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim.


No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade! Porque não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, e não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.


2) Gostaria de não ter trabalhado tanto.


Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo à família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela melhor qualidade. E nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.


3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos.


Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã… o momento de manifestar o nosso carinho àquela pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos, o cupim do desencanto nos corrói por dentro.


4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos.


Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita o nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos, muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassados…


5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz.


Ser feliz é uma questão de escolha. Mas, vamos adiando nossas escolhas, como se fossemos viver 300 ou 500 anos… Ou esperamos que alguém ou uma determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, e não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abraçarmos algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.



 


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Fonte: Frei Betto